(IN)FIDELIDADES A
Gabriela cumpriu a
“ameaça”, e escreveu sobre a forma como ela, ateia assumida, vê a religião. Com a sensatez e brio a que já nos habituou - e que fez de mim leitor assíduo do seu blog - escreveu um texto com o qual concordo quase em absoluto. Só algumas questões me suscitaram algumas dúvidas, sobre as quais gostaria de reflectir um pouco.
A
Gabriela escreveu o seguinte:
“(…) Mas o que está errado, na minha opinião, é assumir que os casais, mesmo sendo católicos praticantes, vivam em absoluto de acordo com estes pressupostos, o que mostra um grande desconhecimento acerca do comportamento humano.”
Neste ponto, não estou de acordo com a
Gabriela. O que a doutrina católica diz é que aquelas que a seguem verdadeiramente não precisam de usar preservativo, porque não têm vários parceiros sexuais. Mas se por alguma razão –
a carne é fraca… - os católicos se virem numa situação em que, devido ao seu comportamento, coloquem em risco a sua vida ou a de terceiros, podem e devem usar preservativo, cometendo um grande
pecado (no sentido estrito do termo) se não o fizerem. A este respeito a posição da Igreja é clara: se não se consegue evitar a promiscuidade sexual, use-se o preservativo, para que daí não resultem males maiores. Embora certos sectores da Igreja não façam grande alarde desta posição – que, na sua óptica, poderia ser entendida como uma incitação ao sexo extra-matrimonial – outros há que têm tomado a atitude corajosa de a defender publicamente, como foi o caso do ex-bispo de Setúbal. E note-se que, por o fazerem, não deixam de estar em comunhão com o Papa e a hierarquia da Igreja.
O texto da Gabriela levanta ainda outra questão:
“(…) A experiência sexual com parceiros diferentes (contra os pressupostos de fidelidade católica) é um comportamento natural, assim como o próprio adultério, que tem até uma lógica reprodutiva, conforme defendem alguns investigadores. E o conflito promiscuidade/fidelidade não é um conflito religioso ou sequer moral, mas antes um conflito de desejos. A partir do momento em que lhe foi posto o carimbo moralista nunca mais dele se livrou.”
Acho que todas as facetas do comportamento humano se poderiam definir como
naturais. Matar ou roubar, por exemplo, também são actos
“naturais”, se os definirmos como inerentes à condição humana. Ainda hoje, na era das maravilhas tecnológicas e das sociedade civilizadas, há quem recorra à violência para sobreviver, para se impor aos seus semelhantes ou para ascender socialmente. Tal como sucedia no tempo do homem das cavernas. O catolicismo não nega que o adultério seja parte da natureza humana: mas condena-o, porque ao contrário dos demais animais, o homem tem a capacidade de distinguir o certo do errado (o tal
“carimbo moralista”). Aliás, um dos pontos principais da doutrina cristã consiste no reconhecimento de que todos somos pecadores… quando Cristo salvou a mulher adúltera do eminente apedrejamento, recorrendo à célebre sentença
“que quem nunca pecou atire a primeira pedra”, reconhecia isso mesmo.
Além disso, a vigilância sobre os comportamentos sexuais não é um privilégio exclusivo do cristianismo ou da nossa moral ocidental. Quase todas as grandes religiões estabelecem regras a este respeito, e condenam o adultério. Na Roma pagã, por exemplo, o adultério era também censurado, e inclusive se o
faltoso fosse o marido (o que não deixa de ser curioso, numa sociedade rigidamente patriarcal como a romana). Penso que, então como agora, o que estava em causa era a sobrevivência da própria sociedade, assente como estava em
gens solidamente estabelecidas. O controlo sobre a reprodução era essencial para manter a união e o poder da sociedade romana. Roma
era as suas poderosas famílias (mas isto já é assunto para o
Roma Antiga!).
Pessoalmente, acho que o que torna o adultério condenável é a mentira e a dissimulação que lhe são inerentes; também podíamos considerar
“naturais” tanto uma como outra, mas nem por isso se tornam
aceitáveis. Penso que quando temos um compromisso com alguém, devemos procurar honrá-lo – ainda que, como a Gabriela referiu, exista um
“conflito de desejos”. Aliás, acho que é precisamente isso que dá valor ao matrimónio cristão: é que reconhecendo que todos somos humanos e que a carne está sujeita a todo o tipo de tentações e desejos, procuramos evitar faltar ao respeito e à confiança da pessoa que realmente amamos. Embora não pareça, o cristianismo sempre separou o
amor do
sexo, embora durante muitos anos tenha acabado por demonizar o segundo, esquecendo-se que a sexualidade humana é uma fantástica dádiva divina. É um dom de Deus, mas que deve ser utilizado no contexto próprio, com a pessoa que realmente amamos.
No entanto, não podemos esquecer que os valores morais (ou a falta deles) variam de pessoa para pessoa, e como tal devem ser encarados.
A Gabriela escreveu ainda:
“(…) Por outro lado acho que a postura de abertura da Igreja em relação a outras questões, mais inócuas, só tem sentido numa lógica mercantilista da Igreja, isto é, vamos lá agradar ao povo para não perdermos adeptos. (…) de facto a Igreja em muitos aspectos está desfasada da realidade social (…).”
Não concordo; acho que a evolução da Igreja tem acompanhado a da sociedade, embora ao seu ritmo… com a dinâmica própria de uma velha e pesada estrutura com quase dois mil anos. Por exemplo, os apelos que o Papa tem feito em prol dos desfavorecidos e da paz mundial (penso ser esse tipo de coisas
“inócuas” a que a Gabriela se refere): é o género de apelos que a Igreja sempre fez ao longo de toda a sua história, com as evidentes e tristes excepções de episódios como as Cruzadas ou certas
colagens a determinados poderes políticos. E penso que a Igreja não está assim tão
“desfasada” da realidade social, como à primeira vista parece (embora reconheça que o está, em certa medida). Simplesmente há coisas que a Igreja não pode aceitar, por uma questão de coerência e fidelidade à doutrina cristã. Dois mil anos de tradição são uma pesada - e por vezes incómoda - herança. E recordemos que, ao longo destes dois milénios, muitos foram os que anunciaram o naufrágio eminente da
Barca de Pedro, por esta estar
“desfasada”. Mas estavam rotundamente enganados, e o naufrágio acabou por surpreendê-los a eles mesmos. Por exemplo, há 30 anos o marxismo estava no auge da sua força; já então se falava no desfasamento da Igreja, e ninguém diria que, no longínquo ano de 2004, o cristianismo estivesse muito mais vivo e dinâmico que a doutrina de Marx. E isto apesar de todos os seus defeitos – que não são poucos - porque a Igreja é feita de homens e mulheres de carne e osso.