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sábado, agosto 28, 2004



AMÉRICA PROFUNDA Chamou-me a atenção um artigo de Luís M. Faria, publicado na edição de 28 de Agosto da excelente revista “Grande Reportagem”, intitulada “Como se faz um presidente”. Em certa altura do dito artigo, o autor escreveu o seguinte: “O mundo tem a vantagem relativa, mas real, de olhar os EUA a partir de fora. Para quem vive dentro e só se alimenta dos media indígenas, em especial os audiovisuais (pouco ou nada interessados em mostrar o resto do mundo), é difícil ter perspectiva. Talvez isso explique que Bush conserva o apoio de cerca de metade dos votantes. Não será, evidentemente, o único factor, mas é um essencial. Para ter curiosidade em relação ao mundo, requere-se conhecer alguma coisa dele. O que a maioria dos americanos sabe do mundo limita-se a uns quantos velhos preconceitos, mais as imagens de carnificina e crise que a televisão oferece e os políticos usam para justificar o uso da força militar, ou outras formas de pressão. Num mundo aparentemente tão pobre e complicado, o poder da América surge como a única forma de impôr a ordem.”(pág. 41)

Claro que o autor tem o direito de exprimir livremente a sua opinião. Mas tratando-se de uma reportagem, e não de um artigo de opinião, seria aconselhável que não o fizesse de forma tão ostentatória. Até porque as apreciações que emite se baseiam mais no senso comum que em dados científicos fiáveis. E porque deixam sobressair um evidente desprezo pela “American way of life”, desprezo esse que impede à partida uma apreciação objectiva dos factos em questão.

Luís Faria afirma que a maioria dos americanos não sabe o que se passa realmente no resto do mundo. E embora sem dispôr (de momento) de dados concretos, concordo com ele. Os media americanos não dão grande importância ao que se passa fora das suas fronteiras.

Mas será que os media europeus o fazem? Até que ponto os meios de comunicação social europeus nos dão uma visão objectiva do que acontece no resto do mundo? Até que ponto as estações de televisão e os jornais europeus estarão imunes aos preconceitos eurocêntricos, aos tiques ideológicos e à crença na superioridade moral da Europa?

Por exemplo, será que o europeu-comum (seja lá o que isso for) tem conhecimento da realidade sócio-cultural da China, da Rússia ou da Austrália? Quantos portugueses saberão o nome do secretário geral do PC Chinês? Ou quantos portugueses saberão com precisão onde fica o Kosovo? Melhor ainda, quantos portugueses conseguirão localizar Timor Leste no mapa-mundi?

O discurso jornalístico dos media europeus está impregnado de preconceitos e conotações ideológicas. Por exemplo, quando se referem ao assassinato de um refém ocidental por um grupo terrorista no Iraque (ou “resistência”, como alguns erradamente dizem), descrevem o facto como a “execução de um refém”. Mas quando se trata da execução extra-judicial – pois é disso que se trata - de um terrorista palestiniano por um comando israelita, o termo usado já é “assassinato”. Ou seja, os valores estão completamente trocados, e os europeus conseguem ser tão obtusos como aqueles americanos pacóvios que passaram a chamar “freedom fries” às batatas fritas, para assim deixarem de usar a expressão “french fries”.

Na verdade, os media europeus são tão preconceituosos como os americanos. E o europeu-comum é tão inculto e ignorante em relação ao que acontece no resto do mundo, como aqueles americanos obesos, de chapéus de baseball na cabeça, imersos naquela cultura de fast-food e MTV que os europeus tanto desprezam. A cultura da “América profunda” não é nem mais nem menos obscurantista e preconceituosa que a dos portugueses das Beiras, dos franceses do Languedoc, dos Alemães da Baviera ou dos austríacos do Tirol. E se, por outro lado, a Europa tem as suas cosmopolitas metrópoles culturais, também a América se pode orgulhar de Nova Iorque, São Francisco ou Chicago. Temos de ter consciência que existem muitas Europas e muitas Américas que, juntas, fazem a civilização ocidental... para usar essa expressão que tão maltratada tem sido nos últimos anos.

O que este mundo precisa não é de uma fractura cultural, política e económica entre a Europa e a América, mas sim de uma relação transatlântica forte e equilibrada, que assuma um papel de liderança da civilização ocidental. Civilização essa que, não devemos esquecer, defende valores de liberdade, democracia e progresso. Se deitarmos tudo a perder, com rivalidades mesquinhas, preconceitos culturais, crenças de superioridade moral e ressentimentos contra o “Império”, regressaremos brevemente à Idade das Trevas.

Luís Faria diz ainda que, de acordo com a visão que os media americanos têm do mundo, “o poder da América surge como a única forma de impôr a ordem”. Em minha opinião, isto é verdade. Nenhuma outra potência tem a vontade política e os meios para impôr a ordem. Quer queiramos quer não, enquanto a Europa não superar os seus complexos pós-imperiais e acordar para a necessidade de investir a sério no sector da Defesa – e de assim construir uma relação transatlântica em pé de verdadeira igualdade -, a América continuará a ser a única garantia contra a barbárie, o obscurantismo e a tirania. Mesmo com presidentes mentecaptos como Bush, e com situações como as que se verificaram em Abu Grahib.

Habituada a não ter que sujar as mãos e a colher o fruto do labor alheio – até na Bósnia tiveram que ser os americanos a resolver a questão -, a Europa acha-se cândida e pura como o rabinho de um bébé. De modo que se considera com legitimidade moral para se julgar moralmente superior aos americanos, sendo na verdade tão preconceituosa como os “polícias do mundo” a quem, talvez mais por inveja que por sentido de decência, critica do alto da sua cátedra moral.



O CÓDIGO DA VINCI (II) Todo o mistério em volta de Maria Madalena e da subjugação do “Sagrado Feminino” tem a sua origem na misteriosa evolução dos dois primeiros séculos de Cristianismo. As investigações levadas a cabo nos últimos duzentos anos conduzem-nos a um complexo labirinto, com centenas de seitas autónomas e diferentes versões da mensagem de Cristo. Existem também suspeitas de que muitos documentos foram forjados, sendo Eusébio de Cesareia por alguns historiadores considerado um dos maiores falsários da História. Há que ter em conta, no entanto, que quer Constantino, quer Eusébio, não eram cristãos “ortodoxos” – no termo da época, ou seja, o que hoje chamaríamos “apostólicos romanos”.

É, portanto, uma questão complicada, saber quais são os verdadeiros Evangelhos. De todos os livros do Novo Testamento, quais deles são verdadeiramente “originais”?

Sabemos que foi S. Jerónimo quem compilou os textos que deram origem à actual Bíblia, traduzindo-os para o latim e organizando-os na Vulgata. Numa carta aos bispos Chromatius e Heliodorus, S. Jerónimo refere a existência de um Evangelho secreto escrito em hebraico pelo punho do próprio S. Mateus, que estava na posse dos Nazarenos, uma confraria iniciática da Síria. Ainda de acordo com o Doutor da Igreja, os Nazarenos autorizaram-no a traduzi-lo para o latim. Mas Jerónimo não o incluiu na Vulgata, por entender que “(...) continha matérias mais para destruir do que para edificar; e era uma obra difícil (...) O próprio São Mateus, Apóstolo e Evangelista, não queria que fosse publicada abertamente (...) [era para ser usada] pelos homens mais religiosos”(1).

Infelizmente, este Evangelho hebraico de S. Mateus não chegou até nós, talvez por apresentar diferenças substanciais em relação ao Evangelho “oficial”.

Os “homens mais religiosos” que tinham acesso a esses textos eram certamente os “iniciados” nos Mistérios gnóstico-cristãos. Os “Mistérios” existiam em todo o mundo antigo, inclusivé no cristianismo primitivo. O próprio Jesus parece fazer referência a eles: “(...) a vós foi dado conhecer estes mistérios do Reino do Céu, mas a eles não. (...) É por isso que eu uso estas parábolas para falar com eles.” (Mt. 13, 11-13). S. Clemente de Alexandria, por seu turno, afirmou o seguinte, numa clara alusão à celebração dos Mistérios: “O Senhor permitiu comunicarmos estes mistérios divinos e esta santa luz aos capazes de o receber. (...) Ao homem capaz de observar secretamente o que lhe é confiado, o que está velado lhe será mostrado como verdade; o que é oculto à multidão, será manifesto à minoria”(2). O próprio S. Paulo escreveu, a respeito de uma experiência mística que teve, mas cujos contornos não poderia revelar: “Conheci um homem há 14 anos que foi levado ao terceiro céu. Eu mesmo não sei se o seu corpo também lá esteve, ou se foi apenas o seu espírito. Só Deus o sabe. Mas de qualquer maneira esteve no paraíso e ouviu coisas de tal maneira surpreendentes que ultrapassavam as capacidades humanas para descrevê-las por palavras, e até nem posso permitir-me fazê-lo”. (II Cor. 12,1-6).

Vários Padres da Igreja foram influenciados pelo gnosticismo, que se assumia como a vivência esotérica (interior) da fé cristã, procurando conciliar a fé com a razão, de modo a não castrar o conhecimento intelectual do homem. A Igreja oficial, de Constantino em diante, procurou acabar com esta vivência esotérica, em detrimento da exotérica (exterior). Mas os Mistérios sobreviveram no Oriente, onde os Templários os redescobriram na época das Cruzadas.

Seria possível, desse modo, que os Templários possuíssem esses textos apócrifos (“secretos”), que apresentavam uma visão diferente da vida e da mensagem de Jesus. E que, conforme pretende a teoria por detrás do “Código Da Vinci”, nesses “evangelhos” fosse dito que Jesus tivera um filho de Madalena e que era ela a “pedra” sobre a qual a sua Igreja deveria ser construída, e não Pedro. Todavia, ainda que esses documentos existam e venham um dia a ser revelados, quem nos garante que sejam autênticos? Ou que, sendo realmente datados dos primórdios da Cristandade, sejam verdadeiramente fiéis à mensagem de Jesus? Parece-me que é apenas uma questão de fé, uma vez que é impossível provar seja o que for.

Em relação ao “sagrado feminimo”, é curioso verificar que, nos primórdios do Cristianismo, as mulheres acediam aos mistérios e mesmo ao sacerdócio. Por exemplo, na capela de Santa Zenónina, em Roma, existe um mosaico com quatro figuras femininas, uma delas com a inscrição “Theodora Episcopa”, ou seja, “Teodora Bispa”. Entretanto, alguém tentou apagar o “a” do nome da presbítera, mas sem sucesso. No entanto, e no que diz respeito ao sacerdócio, não sabemos até que ponto isto seria usual. Podia tratar-se simplesmente de casos pontuais, mais tarde reprimidos, quando o Cristianismo se tornou a religião oficial e sujeita a controlo do Estado.

Já quanto aos Mistérios, sabemos que, por exemplo, os Templários aceitavam mulheres nas suas fileiras, existindo “monjas templárias”. Na cidade portuguesa de Tomar, por exemplo, existem ainda várias placas evocativas da generosidade de algumas dessas monjas, que a expensas suas construíram igrejas e outros edifícios. Se os Templários possuíam “escolas de iniciação nos Mistérios”, como sustentam alguns autores, então as mulheres também lhes deviam ter acesso. Até porque, de acordo com a doutrina esotérica, o ser interno (o espírito) não tem sexo.

Portanto, neste ponto concreto, a teoria por detrás do “Código Da Vinci” tem alguma razão. É verdade que a Igreja do tempo de Constantino não via com bons olhos o acesso das mulheres ao sacerdócio. Tal como S. Paulo, aliás, se pressupôrmos que as suas cartas pastorais não foram adulteradas.

No que diz respeito a Maria Madalena, não acredito na lenda que serviu de inspiração ao “Código Da Vinci”. Pelo seu lado “fantástico” e pela “conveniência geográfica”, faz lembrar as velhas lendas do ciclo arturiano, com o Graal a ser transportado precisamente para Inglaterra, etc. Considero muito pouco provável que ela tenha escrito um Evangelho (e que o tenha escondido no Templo...), que Jesus lhe tenha confiado a Sua Igreja, que tenha fugido para a Gália e que a sua descendência se tenha fundido com a linhagem Merovíngia. Parece-me que, na origem deste mito, esteja a vaidade e a ignorância dos reis francos da Alta Idade Média, que gostavam de ornar a sua majestade com os títulos bíblicos de “Ungido do Senhor” e “Novo David”. Que melhor forma existiria de se reclamarem sucessores de David e, logo, reis por vontade divina, que intitularem-se descendentes de Jesus? Refira-se que os francos e os galo-romanos dos séculos V e VI aceitariam de bom grado um rei descendente de David via Jesus Cristo, mas não um soberano descendente de David por ser judeu. Para o simples fiel da Idade Média, Jesus não era judeu...

Além disso, é curioso que o “ponto de fusão” entre a suposta linhagem de Jesus com a dos monarcas francos se tenha dado precisamente na época do semi-lendário Meroveu, de cuja existência se conhecem poucos pormenores (se é que se trata de uma personagem real). Para um rei como Clóvis ou Dagoberto, era muito mais fácil justificar a sua ligação à suposta linhagem de Cristo, remetendo-a para um período obscuro, ou mesmo lendário, da história da sua família.

Devo no entanto dizer que o facto de Jesus ter tido uma relação com Madalena – ou com outra mulher – me parece uma hipótese plausível. Afinal, apesar de Filho de Deus, era também um homem. E, embora compreenda que para muitos católicos isso fosse uma “bomba” na sua fé, pessoalmente não considero tal facto assim tão importante. O essencial é a mensagem de Jesus, de paz, amor e fraternidade entre todos os homens.

No entanto, não existem provas dessa relação com Madalena. Acreditar nisso ou não, é apenas uma questão de fé.

Mais se poderia dizer acerca dos elementos do culto das antigas deusas que foram transportados para a devoção mariana, ou para uma eventual secreta devoção a Maria Madalena, por parte dos Templários e de outros grupos iniciáticos. Conto fazê-lo em breve, assim que disponha de mais elementos.


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(1)LOUÇÃO, Paulo Alexandre, in “Os Templários na formação de Portugal”. Ed. Esquilo, 7ª Edição, Lisboa 2003
(2)Idem, ibidem

UM GRANDE HOMEM “Sinto com emoção que estou a chegar ao fim da minha peregrinação” (1). Foi com estas palavras que o Papa João Paulo II assinalou a sua chegada ao santuário mariano de Lourdes, no passado dia 14 de Agosto. Para evitar mal entendidos, os responsáveis da Santa Sé apressaram-se a explicar que o Papa se referia apenas à sua peregrinação a Lourdes, mas as palavras do Sumo Pontífice não deixaram de gerar alguma inquietação entre os peregrinos presentes, que as interpretaram como uma alusão à sua frágil saúde.

É, de facto, inegável que a saúde do Papa não é das melhores. João Paulo II tem oitenta e quatro anos, sofre de Parkinson, sobreviveu aos ferimentos de um atentado, a várias doenças e a numerosas operações cirúrgicas. Há muito que deixou de ser aquele “jovem” cardeal desportista, que passava horas a esquiar nas montanhas.

O académico britânico Timothy Garton Ash, que se define a si mesmo como um “liberal agnóstico”, escreveu o seguinte a respeito do Papa João Paulo II: “(...) Ainda se vislumbram lampejos da velha magia, à medida que a figura distante, sempre de branco, atrai toda uma multidão para si com um gesto característico, levantando suave mas repetidamente duas mãos completamente abertas. Depois fala para meio milhão de pessoas como se estivesse perante só uma. É a magia que vi na Polónia comunista, onde ele dissolveu o medo instalado por todas as divisões de Brejnev com um acenar daquela mão agora tremente, e continua a admoestar os governantes deste planeta, independentemente da sua cor política, sejam eles Castro ou Clinton. Por fim ainda oferece auxílio aos pobres, fracos, doentes e oprimidos de todo o mundo. Pode pensar-se, a partir deste hino de elogio inicial, que sou católico, ou mesmo um fã papal. Longe disso (...) como liberal agnóstico, ainda que enraízado num húmus rico de Cristianismo, a minha preocupação não é com a Igreja mas com o mundo, e quero afirmar que o Papa João Paulo II é simplesmente o maior líder mundial do nosso tempo”. E continua: “Ao longo destes vinte anos tive a oportunidade de falar com vários candidatos credíveis para o título de “grande homem” ou “grande mulher” –, Mikhail Gorbatchev, Helmut Kohl, Václav Havel, Lech Walesa, Margaret Tatcher –, mas ninguém se compara à combinação única de força concentrada, consistência intelectual, calor humano e simples bondade de Karol Woytila” (2).

Concordo com Timothy G. Ash. Para além do seu inegável papel na queda do comunismo, creio que a inteligência, coerência, determinação e a simples bondade do Papa fazem dele o maior líder do nosso tempo. Além disso, é um homem extremamente corajoso, que luta por tudo aquilo em que acredita, sem olhar a modas ou ao “politicamente correcto”. Criticou o comunismo, mas também não poupa o capitalismo neo-liberal. Acima de tudo, o Papa defende a pessoa humana e a dignidade a que todos temos direito. Para João Paulo II, uma criança de uma favela sul-americana não é menos importante que um rico homem de negócios nova-iorquino. Todos têm direito a uma vida digna. E isto não por razões ideológicas, mas teológicas: para o Papa, a Doutrina Social da Igreja não é uma terceira via entre o capitalismo liberal e o colectivismo marxista. Como ele próprio explica na encíclica “Solicitudo Rei Socialis”, a Doutrina Social da Igreja não é ideologia, mas teologia.

Por outro lado, as suas posições em matéria de moral sexual são consideradas antiquadas por largos sectores da sociedade. Mas estes não compreendem que a Igreja não pode mudar aquilo que sempre defendeu, por muito que isso agradasse. Dois mil anos depois, a Igreja permanece como depositária da missão que Cristo lhe confiou. Ora sendo eternos os ensinamentos de Jesus, são também a Verdade na qual os católicos acreditam. Claro que, aos olhos dos não crentes, tudo isto parecerá um anacronismo reaccionário, pois não compreendem que a Igreja não pode andar ao sabor de modas. E porque, no fundo, encontram na satisfação dos prazeres terrenos a razão de ser da existência humana, ao passo que os católicos pensam na salvação da alma e na vida eterna.

A coerência do Papa em questões de costumes encontra um paralelo na sua determinação contra todas as formas de guerra. Já no tempo da ocupação alemã da Polónia - cujos horrores sofreu na pele - Karol Woytila se opunha à luta armada e a todas as formas de violência. A um amigo que advogava o uso da força contra a ocupação nazi, o então jovem seminarista respondeu: “A oração é a única arma que resulta”.

Todavia, existem aspectos menos consensuais do seu pontificado, mesmo entre os católicos. Há quem o acuse de ter restaurado o “papado monárquico”, e de sufocar o debate dentro da Igreja. Além disso, têm sido tecidas duras críticas às posições do Vaticano a respeito das mulheres e do seu papel na Igreja e na Sociedade. Mas não deixa de ser curioso que as críticas mais ferozes venham precisamente de pessoas e grupos que não entendem o cristianismo e a igreja. Por exemplo, muitas das pessoas que defendem na praça pública a ordenação das mulheres e o fim do celibato dos padres, são assumidamente ateias ou não religiosas. Não compreendem que estas são questões que se encontram fora do seu entendimento. Porque quem não tem fé, não consegue compreender a forma como o Espírito Santo guia e inspira a Igreja: “Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo” (Mt 28, 20).

Pessoalmente, e quanto à ordenação sacerdotal das mulheres e ao celibato obrigatório, creio que se essa for a vontade de Deus, então o Espírito Santo há de guiar a Igreja nesse sentido, mais tarde ou mais cedo. Mas de qualquer modo, estas são questões que dizem respeito apenas aos católicos, e não áqueles que não compreendem a missão da Igreja.

Quanto a João Paulo II, creio que ficará para a história como um grande líder e um homem extremamente bom e compassivo.

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(1) - Ver jornal “Público”, pág. 24, edição de 15 de Agosto de 2004
(2) - Ver “Não tenhais medo”, in “História do Presente”, pág. 341, colectânea de ensaios de T. G. Ash - Editorial Notícias, 2001



O CÓDIGO DA VINCI O Pedro Gonçalves, do interessante blog Ilha Perdida (a quem felicito pelo primeiro aniversário), desafiou-me a escrever uma dissertação sobre o best seller “O Código Da Vinci”, de Dan Brown.

O livro teve imenso sucesso, quer por se encontrar bastante bem escrito e construído, quer porque aborda a sempre incómoda questão da suposta relação entre Jesus Cristo e Maria Madalena. O tema fora já explorado pelo realizador Martin Scorcese, no seu famoso “A última tentação de Cristo”, e por vários escritores.

Noto que muitas pessoas acreditam cegamente na teoria por detrás do “Código Da Vinci” – como se se tratasse de uma grande revelação. O mesmo se passou há tempos com o filme “Estigma”, quando muita gente se mostrou maravilhada com a suposta mensagem revolucionária que este transmitiria.

É sobre essa teoria, bastante difundida, que pretendo escrever neste post. O autor de “O Código Da Vinci” baseou-se numa teoria segundo a qual existiria uma conspiração da Igreja – a começar por São Pedro e os outros Apóstolos – com o intuito de esconder o facto de Jesus ter sido casado com Maria Madalena, tendo inclusivé um filho dela. No enredo da obra – que, recorde-se, é apenas um livro de ficção – a Igreja teria ocultado tais factos para que estes não entrassem em contradição com a divindade de Jesus. Ou seja, se Jesus tivesse casado e gerado um filho não poderia ser Deus. Essa conspiração teria também o objectivo de “amordaçar o sagrado feminino”, representado por Madalena.

Curiosamente, a hierarquia da Igreja Católica não se mostrou muito incomodada com este livro de Dan Brown, nem com os que o precederam. E creio que percebo porquê; O “Código Da Vinci” não ameaça a Igreja. Senão vejamos:

- Se Jesus tivesse realmente casado com Maria Madalena e dela tivesse uma criança, em que é que isso obstaria à Sua divindade e missão na Terra? O facto de não ser virgem? Os apóstolos também não eram, e nem por isso deixaram de cumprir a sua missão. Não creio que os Doze se dessem ao trabalho de ocultar tais factos. Nem creio que tais revelações pusessem em causa a divindade de Jesus e a Verdade por ele transmitida. Embora, de facto, seria uma “bomba” na actual doutrina oficial da Igreja, se se descobrisse que Jesus tinha tido uma relação com Madalena.

- Segundo os textos apócrifos citados em “O Código Da Vinci”, existiria um “Evangelho Segundo Maria Madalena”, escrito pela própria, nos quais constaria que Cristo lhe teria confiado a Sua igreja. Ora em primeiro lugar, é muito improvável que uma mulher judia – das classes baixas, ainda para mais - soubesse ler e escrever. Além disso, numa sociedade patriarcal como a judaica, era muito improvável que uma mulher pudesse liderar uma comunidade religiosa (os tempos da Profetisa Débora pertenciam ao passado). Pois se Jesus sabia disso, e se estava consciente que os Judeus – destinatários principais da Sua mensagem - e mesmo os seus próprios discípulos não aceitariam tal coisa, como é que lhe poderia confiar a liderança da igreja?

- Há, contudo, um ponto em que a “teoria da conspiração” terá algum fundo de verdade. Na cristandade primitiva, havia quem não acreditasse na divindade de Jesus. Era o caso dos arianos e dos nestorianos, entre outras seitas. Mas não existem provas que estas fossem essas as crenças maioritárias – como o livro supõe - pelo que podemos afirmar com alguma segurança que a maior parte das primitivas igrejas cristãs acreditava que Jesus era o Filho de Deus. Existiram também algumas disputas em relação à escolha dos livros que passaram a integrar o Novo Testamento – na qual o imperador Constantino e o Bispo Eusebio de Cesareia tiveram um papel importante e algo duvidoso - mas não creio que tenha havido uma falsificação generalizada, como insinua o “Código Da Vinci”. Mas posso estar enganado, claro. Pouco se sabe sobre o cristianismo primitivo.

- “O Código Da Vinci” refere ainda que os escritos de Maria Madalena e outros do próprio Jesus estariam guardados nas ruínas do Templo de Salomão, de onde os Templários os resgataram no século XI. É um argumento facilmente questionável; porque estariam tais tesouros guardados precisamente no local mais sagrado do Judaísmo, literalmente no lendário “Santos dos Santos”? Se os sacerdotes do Templo, acérrimos inimigos de Jesus, soubessem que eles lá se encontravam – e saberiam de certeza - depressa os destruiriam. Não faz sentido. Além de que, e convém não esquecer, o Templo foi completamente arrasado pelos Romanos, no ano 70 d.C.. O edifício que os Cruzados encontraram naquele local, mil anos depois - e ao qual erradamente chamaram “Templo de Salomão” - era a actual Mesquita de Al Aqsa, local sagrado do Islão.

- Inspirando-se nessa mesma teoria, o livro refere o facto de Jesus ser descendente da Casa de David, e de Madalena, de acordo o referido evangelho apócrifo, ser proveniente da “Casa de Benjamim”. Segundo com o autor, tal significaria que Madalena era descendente da antiga dinastia de Saúl, e que tanto ela como Jesus gozariam de um estatuto especial por serem descendentes de reis. Ora a expressão “Casa de Benjamin” refere-se à Tribo de Benjamin, uma das doze tribos de Israel. A família de Saúl era apenas um dos muitos clãs da Tribo de Benjamin, pelo que a maioria dos benjaminitas não tinha qualquer parentesco com o rei Saúl, à excepção do facto de serem todos descendentes de Benjamin, filho do Patriarca Jacob (também chamado “Israel”). Logo, o facto de Madalena pertencer à Tribo de Benjamin não significa que era descendente ou sequer aparentada com Saúl. Além disso, na época de Jesus, existiam milhares de descendentes dos antigos reis da Casa de David e Saúl, e a maioria deles pertencia às camadas mais baixas da sociedade, como era o caso de José, pai adoptivo de Jesus, um simples carpinteiro. A sua importância política era nula. Um qualquer descendente dos Asmoneus ou dos Herodianos, famílias que reinaram em Israel entre os séculos II a.C. e I d.C., teria mais peso social e político que um desses esquecidos filhos de David ou Saúl, há muito privados da dignidade real.

- Um dos argumentos usados para “provar” que Jesus se teria casado, é aquele segundo o qual, se Ele fosse solteiro, os Evangelhos diriam porquê. E isto porque na sociedade judaica eram muito mal vistos aqueles que permaneciam solteiros aos trinta anos. Mas também isto tem uma explicação: é provável que Jesus tenha vivido alguns anos como eremita ou como membro de algum grupo essénio (por exemplo, Santo Agostinho escreveu que, na sua época, a tradição esotérica fazia menção dessa fase da vida de Cristo). E sabemos que os essénios viviam em comunidade, quase que fazendo votos de castidade e pobreza. Além disso, aos olhos dos contemporâneos, Jesus era mais um dos muitos “rábis” e profetas que pululavam pela Judeia daquele tempo, e esses “homens santos” – como João Baptista, por exemplo – eram, provavelmente, na sua maioria celibatários. Não havia, por isso, nada de estranho no facto de ele ser ainda solteiro.

- Segundo a obra, depois da morte de Jesus, Madalena teria fugido com a criança para o Sul da Gália, onde existia uma importante comunidade judaica. Na fuga teria contado com a ajuda de José de Arimateia, “tio de Jesus”. Ora segundo os dados de que dispomos, José de Arimateia era um aristocrata membro do Sinédrio, e os evangelhos “oficiais” não o referem como tio de Jesus. Se ele fosse parente de Jesus, com certeza de João, Marcos, Mateus e Lucas fariam referência ao parentesco, até porque não havia motivos para que esse parentesco fosse omitido numa eventual falsificação.

- Além de que não se compreende como é que um aristocrata como José de Arimateia poderia ter um sobrinho relativamente pobre, como Jesus. E se era tio de Jesus, seria irmão de José? E nesse caso, porque é que os dois irmãos tinham o mesmo nome próprio? Ou seria irmão de Maria? Mas nenhum dos Evangelhos diz que José e Maria fossem provenientes de Arimateia, de onde o referido aristocrata era oriundo...

- O livro refere ainda que Madalena e o filho de Jesus permaneceram nas Gálias, onde a sua descendência sobreviveu até ao século V, altura em que se fundiu com a dinastia merovíngia. Ora se a Igreja primitiva perseguia implacavelmente Maria Madalena e tudo o que ela significava, porque é que os imperadores romanos cristãos, que se imiscuíam nas questões religiosas – como Constantino, Constâncio II, Teodósio, etc – não lhes foram no encalço? Os imperadores romanos cristãos perseguiram impiedosamente os “heréticos”, e um grupo que se intitulava “seguidor de Maria Madalena” não ficaria incólume à repressão.


Quanto ao papel da Opus Dei no enredo, compreendo que uma organização poderosa e algo misteriosa como a Opus Dei possa excitar facilmente a imaginação de um romancista, principalmente se este não for católico.

As outras questões levantadas pela obra – as “mensagens” existentes na arquitectura medieval e nas obras de Leonardo da Vinci, etc – não alteram o essencial, que é o facto de não existirem provas de que Jesus tenha tido uma relação com Madalena, da qual nasceu um filho. É uma questão de fé. O facto de Leonardo e outros acreditarem nisso, por muito ilustres que sejam, não constitui prova alguma. Assim como todos os simbolismos existentes no enredo que, não obstante tornarem a narrativa extremamente interessante, não sustentam a tese a respeito de Jesus e Madalena.

Em relação ao mítico “Graal”, a teoria de que o termo se referiria a Madalena é, sem dúvida, interessante. Mas há que ter em conta que o Graal não tem um papel central na fé cristã. Tem mais a ver com as tradições célticas, talvez mesmo com os rituais druídicos. E ainda que, de facto, os contos de cavalaria que narravam a demanda do Graal se referissem a Maria Madalena, não deixariam de traduzir apenas uma crença pessoal dos seus autores. O facto de uma qualquer irmandade secreta acreditar que Jesus teve um filho de Madalena não significa que tal correspondesse à verdade. O mesmo se pode dizer dos documentos secretos por ela preservados que, a existirem realmente, poderiam ser uma falsificação do século XI.

Além disso, a tradição gnóstica e os ditos “evangelhos apócrifos” não provam rigorosamente nada. Apenas representam tradições e modos de pensar diferentes da tradição católica. Aqueles que acusam a Igreja de pretender suprimir os “evangelhos apócrifos”, por a sua mensagem ser supostamente incómoda, esquecem-se que se a Igreja desse crédito a esses escritos – que, além disso, são contraditórios e incoerentes entre si - teria de suprimir e substituir todos os livros do actual Novo Testamento. Ou seja, a Igreja teria sempre que escolher quais escritos seriam os mais fiéis à mensagem de Jesus, sacralizando uns em detrimento de outros.

Creio, por isso, que este livro deve ser lido pelo que é – um bom thriller, bastante bem escrito e construído – e não por aquilo que algumas pessoas gostassem que ele fosse.



AS LÁGRIMAS DE SALADINO “Um dia, quano estávamos em plena campanha contra os Francos [os Cruzados] Saladino chamou os seus íntimos para junto de si. Empunhava uma carta que acabava de ler, e, ao pretender falar, rompeu em soluços. Vendo-o em semelhante estado, não pudemos impedir-nos de chorar igualmente, apesar de ignorarmos do que se tratava. Ele disse, enfim, com a voz embargada pelas lágrimas: «Takieddin, o meu sobrinho, morreu!» E recomeçou a debulhar-se em lágrimas, e nós também. Recobrei a serenidade e disse-lhe: «Não esqueçamos a campanha em que estamos envolvidos e peçamos perdão a Deus por termos cedido ao nosso pranto.» Saladino aprovou-me. «Sim, disse ele, que Deus me perdoe!» Repetiu isto várias vezes, depois acrescentou: «Que ninguém saiba o que sucedeu!» Em seguida, mandou trazer água de rosas para lavar os olhos”. (Bahaeddin Ibn Chaddad, secretário e conselheiro do sultão(1))

No mundo árabe, poucas figuras são tão reverenciadas como Saladino (Salaheddin Yussuf Ibn Ayub, 1137/1193), Sultão do Egipto e da Síria (1175/1193). Fundador da dinastia ayúbida, que governou o Médio Oriente durante quase um século, Saladino celebrizou-se pelos seus modos cavalheirescos, profunda sabedoria e grande generosidade, qualidades essas que lhe valeram o apreço e o reconhecimento dos seus coetâneos. A ponto de, como se pode ler na transcrição acima, o sultão se vir obrigado a esconder a sua natureza humana e sensível, para que não a interpretassem como uma fraqueza.

Quando Saladino ascendeu ao trono do Egipto, o reino “franco” da Palestina – fundado pelos cavaleiros da Primeira Cruzada, no ano 1099 – era ainda uma grande potência regional, que ditava a sua lei aos países do Islão. De início, Saladino procurou conviver pacificamente com os “francos” (termo pelo qual, ainda hoje, os árabes denominam os europeus e os ocidentais em geral). Chegou inclusivé a estabelecer relações de amizade com alguns dos seus líderes, como o Conde Raimundo, Senhor de Tripolis e Tiberíades. Mas o constante desrespeito dos tratados de paz por parte de indivíduos como Reinaldo de Châttillon, pertencente à “ala dura” da aristocracia franca e partidário da guerra total contra o Islão, levou a que o sultão se decidisse pela guerra contra o reino cruzado. E em Julho de 1187, o exército muçulmano esmagou completamente as forças dos Cruzados, na célebre batalha de Hattin. O próprio rei Guido de Jerusálem caíu prisioneiro de Saladino, assim como Raimundo de Châttillon. Foi nesta ocasião que Saladino melhor demonstrou a sua magnanimidade e excepcional grandeza de alma: embora permanecesse refém do sultão durante alguns anos, o rei Guido foi tratado com todas as honras devidas à sua posição (seria mais tarde libertado, em troca da promessa de não voltar a pegar em armas contra o Islão, promessa essa que não foi cumprida). Além disso, Saladino libertou imediatamente todos os prisioneiros que fizera na batalha, mesmo sabendo que estes iriam organizar a resistência das praças fortes que os francos ainda controlavam no litoral palestino. Os únicos que não obtiveram misericórdia de Saladino foram Raimundo de Chattillon – que alguns meses antes atacara e chacinara uma caravana de simples peregrinos que se deslocavam a Meca – e os Cavaleiros Hospitalários e Templários, na sua maioria recém chegados da Europa e ainda imbuídos do fervor anti-muçulmano próprio dos fanáticos.

À luz dos tempos modernos, esta magnanimidade do sultão poderá parecer pouco relevante, mas é necessário ter em conta os costumes da época; em circunstâncias como estas, era usual executar os inimigos capturados ou, conservando-lhes a vida, pedir resgates pela sua libertação. E até serem resgatados, os infelizes passavam longos meses ou mesmo anos nas masmorras dos captores. Saladino foi inclusivé criticado pelos seus súbditos e colaboradores, que viam na generosidade do sultão uma prova de fraqueza. Por exemplo, quando Saladino permitiu que o Patriarca católico de Jerusálem abandonasse a Cidade Santa sem lhe entregar as suas riquezas, os colaboradores do sultão reagiram com indignação. Escreveu Imadeddin al-Asfahani, um dos oficiais de Saladino: “Eu disse ao sultão: «Este patriarca transporta riquezas que não valem menos de duzentos mil dinares. Nós permitimos-lhes que levassem os seus bens, mas não os tesouros das igrejas e dos conventos. Não lhos devemos deixar!» Mas Saladino respondeu: “Temos de aplicar à letra os acordos que assinámos; assim ninguém poderá acusar os crentes [os muçulmanos] de haverem traído os tratados. Muito pelo contrário, os cristãos evocarão em toda a parte os benefícios que lhes propiciámos.” (2)

Nos meses que se seguiram a Hattin, Saladino pôs em prática esta política generosa. Quase todas as cidades e praças fortes dos francos caíram nas suas mãos pacificamente, incluindo a capital, Jerusálem. As vidas dos francos foram poupadas, e o sultão chegou a oferecer presentes aos menos afortunados de entre eles, como os orfãos e as viúvas. Todos os que não tinham posses foram libertados sem que lhes fosse pedido algo em troca. Um notável contraste com o modo de agir dos Cruzados, que na Primeira Cruzada simplesmente massacraram as populações de todas as cidades que conquistaram. Em Jerusálem, por exemplo, os Cruzados mataram todos os homens, mulheres e crianças, e nem os animais escaparam à sua cólera.

A resposta europeia não se fez esperar. Escutando o apelo ardente do Arcebispo Guilherme de Tiro, a cristandade uniu-se em torno da reconquista de Jerusálem, organizando a Terceira Cruzada. Ricardo de Inglaterra, o “Coração de Leão”, Filipe Augusto de França e Frederico Barba Ruiva, imperador da Alemanha, encabeçavam a expedição. De acordo com os cronistas árabes, este último, que vinha por terra e que enquanto imperador detinha o comando da Cruzada, trazia consigo cerca de duzentos e sessenta mil homens(3). Frederico, a quem os cronistas árabes chamavam “rei dos Alman”, era o que mais preocupava Saladino. Mas este temor desvaneceu-se quando, muito inesperadamente, o velho imperador se afogou num ribeiro da Cilícia, talvez devido a uma crise cardíaca. O seu exército rapidamente se desfez e voltou ao seu país, à excepção de uma pequena força comandada pelo filho de Barba Ruiva.
Faltava agora o resto do exército cristão, que vinha por mar. Em meados de 1191, Ricardo de Inglaterra e Filipe Augusto de França desembarcaram em Acre, onde uma guarnição muçulmana resistia há várias meses ao cerco do exército dos francos da Palestina que, por sua vez, se encontrava rodeado pelas forças de Saladino. Bahaeddin escreveu o seguinte a respeito da chegada das forças do rei de Inglaterra: “Este rei de Inglaterra, Malek-Al-Inkitar, era um homem corajoso, enérgico, arrojado no combate. Embora inferior ao rei de França em categoria, era mais rico e mais afamado como guerreiro (...) E quando surgiu diante de Acre, acompanhado de vinte e cinco galeras a abarrotar de homens e material de guerra, os Francos soltaram brados de alegria, acendendo grandes fogueiras para assinalar a sua vinda. Quanto aos muçulmanos, este acontecimento encheu-lhes os corações de temor e de apreensão.” (4)

E tinham razões para isso. Assumindo o comando dos Cruzados, Ricardo conseguiu a capitulação de Acre. Ao contrário de Saladino, que quando conquistara Acre libertara todos os soldados da guarnição, o “Coração de Leão” mandou matar todos os guerreiros muçulmanos, juntamente com as respectivas mulheres e filhos. Colocou-os a todos – dois mil e setecentos soldados, com cerca de trezentas mulheres e crianças – amarrados diante dos muros, após o que permitiu que os seus homens dessem largas à sua fúria sanguinária. Quando Saladino soube da queda de Acre e do massacre que se lhe seguiu, mergulhou numa profunda depressão. Segundo o mesmo Baheddin, o sultão parecia “uma mãe que acabasse de perder o filho”, e os seus colaboradores tiveram de o reconfortar e animar, para continuar a luta. Mais uma vez, temos uma prova da sua natureza profundamente sensível e humana, coisa rara nos governantes daquele tempo.
Não obstante o triunfo em Acre, Ricardo viu-se obrigado a negociar. O rei de França tinha regressado ao seu país, ao fim de uns escassos três meses no Oriente, o que reduziu os efectivos dos Cruzados. Além disso, os vários recontros com as forças de Saladino não produziram qualquer resultado decisivo. Ricardo procurava avançar na direcção de Jerusálem, mas Saladino impedia-lhe a passagem. Negociar apresentava-se como a única solução possível. O rei inglês procurou assim encontrar-se com Saladino, fascinado que estava com o seu carácter cavalheiresco. De facto, Ricardo não escondia a sua admiração pelo sultão. Mas este recusou encontrar-se pessoalmente com Ricardo, enquanto não chegassem a um acordo; mas depois, dizia ele, poderiam “comer juntos como amigos”. E Ricardo – cada vez mais ansioso por regressar a Inglaterra – viu-se forçado a propôr a paz, em troca da cedência dos territórios a oeste do Jordão - incluindo Jerusálem, que Ricardo considerava “lugar de culto” dos Cristãos, e ao qual “jamais aceitaria renunciar”. Ainda de acordo com Bahaeddin, o sultão respondeu-lhe nos seguintes termos: “A cidade santa é tanto nossa quanto vossa”. Disse-lhe ainda que a ocupação dos Cruzados era “simplesmente passageira”, e que “o Islão não permitiria que voltassem a desfrutar daquelas possessões” (5).

É notável o facto de Saladino reconhecer que Jerusálem pertencia tanto aos cristãos como aos muçulmanos. Ao contrário de Ricardo e dos Cruzados, que não admitiam o facto de a cidade ser santa também para os Muçulmanos e Judeus, o sultão reconhecia que Jerusálem era sagrada para todas as religiões do Livro, e que todos tinham o direito de orar nos respectivos santuários, cuja integridade deveria ser sempre respeitada.

A ocupação de Jerusálem pelos ocidentais era para os muçulmanos o que para nós, católicos, seria a conquista de Roma, de Fátima ou de Lourdes pelo Islão! Os muçulmanos acreditam que Maomé ascendeu aos céus em Jerusálem, razão pela qual esta é a terceira cidade mais sagrada da sua fé (depois de Meca e Medina).

Nesse mesmo ano, assinou-se um acordo de paz segundo o qual os Cruzados mantinham Acre e algumas praças do litoral. Tinham ainda direito a prestar culto em Jerusálem, desde que lá peregrinassem desarmados. Estabelecida a paz, Saladino convidou os principais nobres francos a visitar Jerusálem, dando mesmo banquetes em sua honra. Apenas Ricardo recusou o convite, partindo apressadamente para Inglaterra, deixando o Oriente sem ver nem Saladino nem Jerusálem...

Contam-se ainda muitas outras histórias sobre a bondade e generosidade de Saladino. Por exemplo, numa altura em que o seu exército sitiava uma determinada cidade franca, tomou conhecimento de que estava a decorrer um casamento no interior das muralhas. Sensibilizado, enviou mensageiros à cidade para apurar em que edifício tinha lugar a boda, de modo a que os noivos e os seus convidados não fossem molestados pela sua artilharia. Espantada perante tanta generosidade por parte do sultão, a mãe da noiva enviou-lhe doces e iguarias para que também ele participasse nos festejos! Conta-se também que os seus tesoureiros se viam forçados a manter um fundo secreto, sem que o sultão soubesse, porque caso contrário ele desbarataria todas as verbas em presentes para os amigos, e generosidades várias para com os pobres.
A reconquista de Jerusálem valeu a Saladino a fama e o reconhecimento de todo o mundo muçulmano. Daí que se tenha tornado um herói popular do Islão, à semelhança de personagens como o nosso D. Nuno Álvares Pereira, Joana D’Arc em França, El Cid em Espanha, etc. Ainda hoje o seu nome e o seu exemplo são invocados pelos líderes muçulmanos. No actual conflito israelo-árabe – que apresenta curiosas semelhanças com o episódio das Cruzadas – a memória de Saladino é constantemente invocada pelos dirigentes palestinianos. Mas não só por estes últimos; Saddam Hussein, por exemplo, que nasceu na mesma cidade que o célebre sultão (Tikrit, no norte do Iraque), intitulava-se “O novo Saladino” (curiosamente, Saddam Hussein parece esquecer que Saladino era de origem curda, precisamente o povo que o ditador iraquiano mais oprimiu e perseguiu...).

Que diferença entre Saladino, o tolerante, e os Saddam’s e Bin Laden’s do nosso tempo!

POBRE ZÉ MARIA Esquecido pelo público, traído pelos parasitas que o cercavam, abandonado por aqueles que lhe deram fama, Zé Maria desistiu de viver e tentou o suicídio.

O “Big Brother” é lixo televisivo. Pega em pessoas como Zé Maria – gente frágil, sem ponta de amor próprio, disposta a tudo para ser “famosa” – levam-nas aos píncaros e, pouco depois, quando a sua imagem deixa de dar lucro, deixam-nas cair. Foi isso que aconteceu ao pobre Zé Maria: pensou que era “alguém”, e ingenuamente acreditou que as pancadinhas nas costas e as palavras amáveis eram sinceras. Zé Maria acreditou que aqueles que o rodeavam estavam interessados na sua pessoa e não no proveito que poderiam extrair da sua efémera fama. Zé Maria ascendeu rapidamente, mas caíu ainda de forma mais vertiginosa.

O formato do “Big Brother” é desumano, pois viola um dos direitos mais elementares de todo o ser humano: o direito à privacidade e à reserva da intimidade. Há direitos que são inalienáveis, que nem de livre vontade podemos abdicar. A bem de nós próprios, mas também desta sociedade cada vez mais desumana.

REPÚBLICA DOS BANANAS No âmbito da sua licenciatura, um amigo meu realizou o seu estágio curricular numa autarquia do Norte do país. Ora sucedeu que, poucos dias antes do término do estágio, o Presidente da Câmara chamou-o para uma reunião em que se discutiria o seu futuro. Ao que parece, haveria a hipótese de esse meu amigo ser contratado pela autarquia, uma vez que o trabalho que realizou enquanto estagiário foi por todos considerado muito satisfatório, para não dizer mesmo excelente.

Esperançoso e com a melhor das disposições, o meu colega compareceu à dita reunião. Todavia, qual foi o seu espanto quando o Presidente da Câmara - fazendo tábua rasa das suas habilitações e do trabalho que entretanto desenvolveu na autarquia - se limitou a perguntar-lhe: “Quem são os seus pais?”. Ao que o meu colega, percebendo finalmente as “regras do jogo”, respondeu: “São pessoas humildes, e por isso o senhor não os deve conhecer”. E esclarecido agora sobre as origens familiares do jovem, o autarca encerrou a reunião comunicando-lhe que a autarquia não estava interessada em contratá-lo.

Este caso é apenas um exemplo entre muitos outros que, embora não tão explícitos, se verificam todos os dias. E os jovens recém licenciados, em busca do primeiro emprego, são espectadores privilegiados desse triste circo que é o da colocação no mercado de trabalho.

Pobre país o nosso, em que os cargos públicos são atribuídos a yes men e “meninos bem”! Pobre país o nosso, em que a competência e o mérito individuais não são tidos em conta! Pobre país o nosso, cujos funcionários públicos são escolhidos com base em cunhas e clientelas político-partidárias! Pobre país o nosso, entregue a uma classe política medíocre e a caciques e baronetes locais, que usam em seu proveito o Estado e as instituições! Pobre país o nosso, que obriga os seus melhores quadros a emigrar em busca das oportunidades e do reconhecimento a que teriam direito na sua pátria, por mercê do seu mérito e das suas qualidades pessoais!

O maior mal de Portugal, e que continua na origem do nosso atraso em relação ao resto da Europa, é esta corja de sôfregos parasitas que - sem distinção de ideologias ou cores partidárias - há séculos mama alegremente na teta do Estado. O nosso maior inimigo é esta mentalidade subsídio-dependente, pesadamente burocrática (ou será “burrocrática”?), mesquinha, tacanha, sem visão, ignorante e provinciana.

Claro que existem cargos em que a confiança pessoal ou política é essencial, e em que se compreende que para a sua atribuição se tenha em conta a recomendação de amigos ou conhecidos. Mas não é a esses casos que me refiro neste artigo.

Também não quero, de modo algum, afirmar que todos os funcionários públicos devem os seus cargos a “cunhas” ou favorecimentos pessoais. Mas com certeza que aqueles que progrediram profissionalmente devido à sua competência reconhecem, por seu turno, que existem muitos outros que devem a sua ascensão a outros factores.

segunda-feira, agosto 23, 2004

SORRY Antes de mais, peço desculpa pelo aparente abandono a que este blog tem sido votado. Encontro-me de férias e, até à primeira semana de Setembro, não terei acesso regular à internet.

Quanto à minha aventura italiana, ficou adiada por alguns meses, devido a um contratempo de última hora. Foi uma pequena desilusão, da qual recuperei rapidamente, talvez por saber que o meu estágio ficou apenas adiado e não cancelado. É a vida! E, vendo bem, tudo isto tem o seu lado positivo: irei para Roma numa altura em que terei menos despesas de estadia e alojamento, pois nos meses de Verão é tudo muito caro. E , provavelmente, poderei fazer um estágio mais longo.

Na próxima semana terei mais novidades. Até lá, boas férias a todos!