AMÉRICA PROFUNDA Chamou-me a atenção um artigo de Luís M. Faria, publicado na edição de 28 de Agosto da excelente revista “Grande Reportagem”, intitulada “Como se faz um presidente”. Em certa altura do dito artigo, o autor escreveu o seguinte: “O mundo tem a vantagem relativa, mas real, de olhar os EUA a partir de fora. Para quem vive dentro e só se alimenta dos media indígenas, em especial os audiovisuais (pouco ou nada interessados em mostrar o resto do mundo), é difícil ter perspectiva. Talvez isso explique que Bush conserva o apoio de cerca de metade dos votantes. Não será, evidentemente, o único factor, mas é um essencial. Para ter curiosidade em relação ao mundo, requere-se conhecer alguma coisa dele. O que a maioria dos americanos sabe do mundo limita-se a uns quantos velhos preconceitos, mais as imagens de carnificina e crise que a televisão oferece e os políticos usam para justificar o uso da força militar, ou outras formas de pressão. Num mundo aparentemente tão pobre e complicado, o poder da América surge como a única forma de impôr a ordem.”(pág. 41)
Claro que o autor tem o direito de exprimir livremente a sua opinião. Mas tratando-se de uma reportagem, e não de um artigo de opinião, seria aconselhável que não o fizesse de forma tão ostentatória. Até porque as apreciações que emite se baseiam mais no senso comum que em dados científicos fiáveis. E porque deixam sobressair um evidente desprezo pela “American way of life”, desprezo esse que impede à partida uma apreciação objectiva dos factos em questão.
Luís Faria afirma que a maioria dos americanos não sabe o que se passa realmente no resto do mundo. E embora sem dispôr (de momento) de dados concretos, concordo com ele. Os media americanos não dão grande importância ao que se passa fora das suas fronteiras.
Mas será que os media europeus o fazem? Até que ponto os meios de comunicação social europeus nos dão uma visão objectiva do que acontece no resto do mundo? Até que ponto as estações de televisão e os jornais europeus estarão imunes aos preconceitos eurocêntricos, aos tiques ideológicos e à crença na superioridade moral da Europa?
Por exemplo, será que o europeu-comum (seja lá o que isso for) tem conhecimento da realidade sócio-cultural da China, da Rússia ou da Austrália? Quantos portugueses saberão o nome do secretário geral do PC Chinês? Ou quantos portugueses saberão com precisão onde fica o Kosovo? Melhor ainda, quantos portugueses conseguirão localizar Timor Leste no mapa-mundi?
O discurso jornalístico dos media europeus está impregnado de preconceitos e conotações ideológicas. Por exemplo, quando se referem ao assassinato de um refém ocidental por um grupo terrorista no Iraque (ou “resistência”, como alguns erradamente dizem), descrevem o facto como a “execução de um refém”. Mas quando se trata da execução extra-judicial – pois é disso que se trata - de um terrorista palestiniano por um comando israelita, o termo usado já é “assassinato”. Ou seja, os valores estão completamente trocados, e os europeus conseguem ser tão obtusos como aqueles americanos pacóvios que passaram a chamar “freedom fries” às batatas fritas, para assim deixarem de usar a expressão “french fries”.
Na verdade, os media europeus são tão preconceituosos como os americanos. E o europeu-comum é tão inculto e ignorante em relação ao que acontece no resto do mundo, como aqueles americanos obesos, de chapéus de baseball na cabeça, imersos naquela cultura de fast-food e MTV que os europeus tanto desprezam. A cultura da “América profunda” não é nem mais nem menos obscurantista e preconceituosa que a dos portugueses das Beiras, dos franceses do Languedoc, dos Alemães da Baviera ou dos austríacos do Tirol. E se, por outro lado, a Europa tem as suas cosmopolitas metrópoles culturais, também a América se pode orgulhar de Nova Iorque, São Francisco ou Chicago. Temos de ter consciência que existem muitas Europas e muitas Américas que, juntas, fazem a civilização ocidental... para usar essa expressão que tão maltratada tem sido nos últimos anos.
O que este mundo precisa não é de uma fractura cultural, política e económica entre a Europa e a América, mas sim de uma relação transatlântica forte e equilibrada, que assuma um papel de liderança da civilização ocidental. Civilização essa que, não devemos esquecer, defende valores de liberdade, democracia e progresso. Se deitarmos tudo a perder, com rivalidades mesquinhas, preconceitos culturais, crenças de superioridade moral e ressentimentos contra o “Império”, regressaremos brevemente à Idade das Trevas.
Luís Faria diz ainda que, de acordo com a visão que os media americanos têm do mundo, “o poder da América surge como a única forma de impôr a ordem”. Em minha opinião, isto é verdade. Nenhuma outra potência tem a vontade política e os meios para impôr a ordem. Quer queiramos quer não, enquanto a Europa não superar os seus complexos pós-imperiais e acordar para a necessidade de investir a sério no sector da Defesa – e de assim construir uma relação transatlântica em pé de verdadeira igualdade -, a América continuará a ser a única garantia contra a barbárie, o obscurantismo e a tirania. Mesmo com presidentes mentecaptos como Bush, e com situações como as que se verificaram em Abu Grahib.
Habituada a não ter que sujar as mãos e a colher o fruto do labor alheio – até na Bósnia tiveram que ser os americanos a resolver a questão -, a Europa acha-se cândida e pura como o rabinho de um bébé. De modo que se considera com legitimidade moral para se julgar moralmente superior aos americanos, sendo na verdade tão preconceituosa como os “polícias do mundo” a quem, talvez mais por inveja que por sentido de decência, critica do alto da sua cátedra moral.
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