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sábado, agosto 28, 2004



AS LÁGRIMAS DE SALADINO “Um dia, quano estávamos em plena campanha contra os Francos [os Cruzados] Saladino chamou os seus íntimos para junto de si. Empunhava uma carta que acabava de ler, e, ao pretender falar, rompeu em soluços. Vendo-o em semelhante estado, não pudemos impedir-nos de chorar igualmente, apesar de ignorarmos do que se tratava. Ele disse, enfim, com a voz embargada pelas lágrimas: «Takieddin, o meu sobrinho, morreu!» E recomeçou a debulhar-se em lágrimas, e nós também. Recobrei a serenidade e disse-lhe: «Não esqueçamos a campanha em que estamos envolvidos e peçamos perdão a Deus por termos cedido ao nosso pranto.» Saladino aprovou-me. «Sim, disse ele, que Deus me perdoe!» Repetiu isto várias vezes, depois acrescentou: «Que ninguém saiba o que sucedeu!» Em seguida, mandou trazer água de rosas para lavar os olhos”. (Bahaeddin Ibn Chaddad, secretário e conselheiro do sultão(1))

No mundo árabe, poucas figuras são tão reverenciadas como Saladino (Salaheddin Yussuf Ibn Ayub, 1137/1193), Sultão do Egipto e da Síria (1175/1193). Fundador da dinastia ayúbida, que governou o Médio Oriente durante quase um século, Saladino celebrizou-se pelos seus modos cavalheirescos, profunda sabedoria e grande generosidade, qualidades essas que lhe valeram o apreço e o reconhecimento dos seus coetâneos. A ponto de, como se pode ler na transcrição acima, o sultão se vir obrigado a esconder a sua natureza humana e sensível, para que não a interpretassem como uma fraqueza.

Quando Saladino ascendeu ao trono do Egipto, o reino “franco” da Palestina – fundado pelos cavaleiros da Primeira Cruzada, no ano 1099 – era ainda uma grande potência regional, que ditava a sua lei aos países do Islão. De início, Saladino procurou conviver pacificamente com os “francos” (termo pelo qual, ainda hoje, os árabes denominam os europeus e os ocidentais em geral). Chegou inclusivé a estabelecer relações de amizade com alguns dos seus líderes, como o Conde Raimundo, Senhor de Tripolis e Tiberíades. Mas o constante desrespeito dos tratados de paz por parte de indivíduos como Reinaldo de Châttillon, pertencente à “ala dura” da aristocracia franca e partidário da guerra total contra o Islão, levou a que o sultão se decidisse pela guerra contra o reino cruzado. E em Julho de 1187, o exército muçulmano esmagou completamente as forças dos Cruzados, na célebre batalha de Hattin. O próprio rei Guido de Jerusálem caíu prisioneiro de Saladino, assim como Raimundo de Châttillon. Foi nesta ocasião que Saladino melhor demonstrou a sua magnanimidade e excepcional grandeza de alma: embora permanecesse refém do sultão durante alguns anos, o rei Guido foi tratado com todas as honras devidas à sua posição (seria mais tarde libertado, em troca da promessa de não voltar a pegar em armas contra o Islão, promessa essa que não foi cumprida). Além disso, Saladino libertou imediatamente todos os prisioneiros que fizera na batalha, mesmo sabendo que estes iriam organizar a resistência das praças fortes que os francos ainda controlavam no litoral palestino. Os únicos que não obtiveram misericórdia de Saladino foram Raimundo de Chattillon – que alguns meses antes atacara e chacinara uma caravana de simples peregrinos que se deslocavam a Meca – e os Cavaleiros Hospitalários e Templários, na sua maioria recém chegados da Europa e ainda imbuídos do fervor anti-muçulmano próprio dos fanáticos.

À luz dos tempos modernos, esta magnanimidade do sultão poderá parecer pouco relevante, mas é necessário ter em conta os costumes da época; em circunstâncias como estas, era usual executar os inimigos capturados ou, conservando-lhes a vida, pedir resgates pela sua libertação. E até serem resgatados, os infelizes passavam longos meses ou mesmo anos nas masmorras dos captores. Saladino foi inclusivé criticado pelos seus súbditos e colaboradores, que viam na generosidade do sultão uma prova de fraqueza. Por exemplo, quando Saladino permitiu que o Patriarca católico de Jerusálem abandonasse a Cidade Santa sem lhe entregar as suas riquezas, os colaboradores do sultão reagiram com indignação. Escreveu Imadeddin al-Asfahani, um dos oficiais de Saladino: “Eu disse ao sultão: «Este patriarca transporta riquezas que não valem menos de duzentos mil dinares. Nós permitimos-lhes que levassem os seus bens, mas não os tesouros das igrejas e dos conventos. Não lhos devemos deixar!» Mas Saladino respondeu: “Temos de aplicar à letra os acordos que assinámos; assim ninguém poderá acusar os crentes [os muçulmanos] de haverem traído os tratados. Muito pelo contrário, os cristãos evocarão em toda a parte os benefícios que lhes propiciámos.” (2)

Nos meses que se seguiram a Hattin, Saladino pôs em prática esta política generosa. Quase todas as cidades e praças fortes dos francos caíram nas suas mãos pacificamente, incluindo a capital, Jerusálem. As vidas dos francos foram poupadas, e o sultão chegou a oferecer presentes aos menos afortunados de entre eles, como os orfãos e as viúvas. Todos os que não tinham posses foram libertados sem que lhes fosse pedido algo em troca. Um notável contraste com o modo de agir dos Cruzados, que na Primeira Cruzada simplesmente massacraram as populações de todas as cidades que conquistaram. Em Jerusálem, por exemplo, os Cruzados mataram todos os homens, mulheres e crianças, e nem os animais escaparam à sua cólera.

A resposta europeia não se fez esperar. Escutando o apelo ardente do Arcebispo Guilherme de Tiro, a cristandade uniu-se em torno da reconquista de Jerusálem, organizando a Terceira Cruzada. Ricardo de Inglaterra, o “Coração de Leão”, Filipe Augusto de França e Frederico Barba Ruiva, imperador da Alemanha, encabeçavam a expedição. De acordo com os cronistas árabes, este último, que vinha por terra e que enquanto imperador detinha o comando da Cruzada, trazia consigo cerca de duzentos e sessenta mil homens(3). Frederico, a quem os cronistas árabes chamavam “rei dos Alman”, era o que mais preocupava Saladino. Mas este temor desvaneceu-se quando, muito inesperadamente, o velho imperador se afogou num ribeiro da Cilícia, talvez devido a uma crise cardíaca. O seu exército rapidamente se desfez e voltou ao seu país, à excepção de uma pequena força comandada pelo filho de Barba Ruiva.
Faltava agora o resto do exército cristão, que vinha por mar. Em meados de 1191, Ricardo de Inglaterra e Filipe Augusto de França desembarcaram em Acre, onde uma guarnição muçulmana resistia há várias meses ao cerco do exército dos francos da Palestina que, por sua vez, se encontrava rodeado pelas forças de Saladino. Bahaeddin escreveu o seguinte a respeito da chegada das forças do rei de Inglaterra: “Este rei de Inglaterra, Malek-Al-Inkitar, era um homem corajoso, enérgico, arrojado no combate. Embora inferior ao rei de França em categoria, era mais rico e mais afamado como guerreiro (...) E quando surgiu diante de Acre, acompanhado de vinte e cinco galeras a abarrotar de homens e material de guerra, os Francos soltaram brados de alegria, acendendo grandes fogueiras para assinalar a sua vinda. Quanto aos muçulmanos, este acontecimento encheu-lhes os corações de temor e de apreensão.” (4)

E tinham razões para isso. Assumindo o comando dos Cruzados, Ricardo conseguiu a capitulação de Acre. Ao contrário de Saladino, que quando conquistara Acre libertara todos os soldados da guarnição, o “Coração de Leão” mandou matar todos os guerreiros muçulmanos, juntamente com as respectivas mulheres e filhos. Colocou-os a todos – dois mil e setecentos soldados, com cerca de trezentas mulheres e crianças – amarrados diante dos muros, após o que permitiu que os seus homens dessem largas à sua fúria sanguinária. Quando Saladino soube da queda de Acre e do massacre que se lhe seguiu, mergulhou numa profunda depressão. Segundo o mesmo Baheddin, o sultão parecia “uma mãe que acabasse de perder o filho”, e os seus colaboradores tiveram de o reconfortar e animar, para continuar a luta. Mais uma vez, temos uma prova da sua natureza profundamente sensível e humana, coisa rara nos governantes daquele tempo.
Não obstante o triunfo em Acre, Ricardo viu-se obrigado a negociar. O rei de França tinha regressado ao seu país, ao fim de uns escassos três meses no Oriente, o que reduziu os efectivos dos Cruzados. Além disso, os vários recontros com as forças de Saladino não produziram qualquer resultado decisivo. Ricardo procurava avançar na direcção de Jerusálem, mas Saladino impedia-lhe a passagem. Negociar apresentava-se como a única solução possível. O rei inglês procurou assim encontrar-se com Saladino, fascinado que estava com o seu carácter cavalheiresco. De facto, Ricardo não escondia a sua admiração pelo sultão. Mas este recusou encontrar-se pessoalmente com Ricardo, enquanto não chegassem a um acordo; mas depois, dizia ele, poderiam “comer juntos como amigos”. E Ricardo – cada vez mais ansioso por regressar a Inglaterra – viu-se forçado a propôr a paz, em troca da cedência dos territórios a oeste do Jordão - incluindo Jerusálem, que Ricardo considerava “lugar de culto” dos Cristãos, e ao qual “jamais aceitaria renunciar”. Ainda de acordo com Bahaeddin, o sultão respondeu-lhe nos seguintes termos: “A cidade santa é tanto nossa quanto vossa”. Disse-lhe ainda que a ocupação dos Cruzados era “simplesmente passageira”, e que “o Islão não permitiria que voltassem a desfrutar daquelas possessões” (5).

É notável o facto de Saladino reconhecer que Jerusálem pertencia tanto aos cristãos como aos muçulmanos. Ao contrário de Ricardo e dos Cruzados, que não admitiam o facto de a cidade ser santa também para os Muçulmanos e Judeus, o sultão reconhecia que Jerusálem era sagrada para todas as religiões do Livro, e que todos tinham o direito de orar nos respectivos santuários, cuja integridade deveria ser sempre respeitada.

A ocupação de Jerusálem pelos ocidentais era para os muçulmanos o que para nós, católicos, seria a conquista de Roma, de Fátima ou de Lourdes pelo Islão! Os muçulmanos acreditam que Maomé ascendeu aos céus em Jerusálem, razão pela qual esta é a terceira cidade mais sagrada da sua fé (depois de Meca e Medina).

Nesse mesmo ano, assinou-se um acordo de paz segundo o qual os Cruzados mantinham Acre e algumas praças do litoral. Tinham ainda direito a prestar culto em Jerusálem, desde que lá peregrinassem desarmados. Estabelecida a paz, Saladino convidou os principais nobres francos a visitar Jerusálem, dando mesmo banquetes em sua honra. Apenas Ricardo recusou o convite, partindo apressadamente para Inglaterra, deixando o Oriente sem ver nem Saladino nem Jerusálem...

Contam-se ainda muitas outras histórias sobre a bondade e generosidade de Saladino. Por exemplo, numa altura em que o seu exército sitiava uma determinada cidade franca, tomou conhecimento de que estava a decorrer um casamento no interior das muralhas. Sensibilizado, enviou mensageiros à cidade para apurar em que edifício tinha lugar a boda, de modo a que os noivos e os seus convidados não fossem molestados pela sua artilharia. Espantada perante tanta generosidade por parte do sultão, a mãe da noiva enviou-lhe doces e iguarias para que também ele participasse nos festejos! Conta-se também que os seus tesoureiros se viam forçados a manter um fundo secreto, sem que o sultão soubesse, porque caso contrário ele desbarataria todas as verbas em presentes para os amigos, e generosidades várias para com os pobres.
A reconquista de Jerusálem valeu a Saladino a fama e o reconhecimento de todo o mundo muçulmano. Daí que se tenha tornado um herói popular do Islão, à semelhança de personagens como o nosso D. Nuno Álvares Pereira, Joana D’Arc em França, El Cid em Espanha, etc. Ainda hoje o seu nome e o seu exemplo são invocados pelos líderes muçulmanos. No actual conflito israelo-árabe – que apresenta curiosas semelhanças com o episódio das Cruzadas – a memória de Saladino é constantemente invocada pelos dirigentes palestinianos. Mas não só por estes últimos; Saddam Hussein, por exemplo, que nasceu na mesma cidade que o célebre sultão (Tikrit, no norte do Iraque), intitulava-se “O novo Saladino” (curiosamente, Saddam Hussein parece esquecer que Saladino era de origem curda, precisamente o povo que o ditador iraquiano mais oprimiu e perseguiu...).

Que diferença entre Saladino, o tolerante, e os Saddam’s e Bin Laden’s do nosso tempo!