O CÓDIGO DA VINCI O Pedro Gonçalves, do interessante blog Ilha Perdida (a quem felicito pelo primeiro aniversário), desafiou-me a escrever uma dissertação sobre o best seller “O Código Da Vinci”, de Dan Brown.
O livro teve imenso sucesso, quer por se encontrar bastante bem escrito e construído, quer porque aborda a sempre incómoda questão da suposta relação entre Jesus Cristo e Maria Madalena. O tema fora já explorado pelo realizador Martin Scorcese, no seu famoso “A última tentação de Cristo”, e por vários escritores.
Noto que muitas pessoas acreditam cegamente na teoria por detrás do “Código Da Vinci” – como se se tratasse de uma grande revelação. O mesmo se passou há tempos com o filme “Estigma”, quando muita gente se mostrou maravilhada com a suposta mensagem revolucionária que este transmitiria.
É sobre essa teoria, bastante difundida, que pretendo escrever neste post. O autor de “O Código Da Vinci” baseou-se numa teoria segundo a qual existiria uma conspiração da Igreja – a começar por São Pedro e os outros Apóstolos – com o intuito de esconder o facto de Jesus ter sido casado com Maria Madalena, tendo inclusivé um filho dela. No enredo da obra – que, recorde-se, é apenas um livro de ficção – a Igreja teria ocultado tais factos para que estes não entrassem em contradição com a divindade de Jesus. Ou seja, se Jesus tivesse casado e gerado um filho não poderia ser Deus. Essa conspiração teria também o objectivo de “amordaçar o sagrado feminino”, representado por Madalena.
Curiosamente, a hierarquia da Igreja Católica não se mostrou muito incomodada com este livro de Dan Brown, nem com os que o precederam. E creio que percebo porquê; O “Código Da Vinci” não ameaça a Igreja. Senão vejamos:
- Se Jesus tivesse realmente casado com Maria Madalena e dela tivesse uma criança, em que é que isso obstaria à Sua divindade e missão na Terra? O facto de não ser virgem? Os apóstolos também não eram, e nem por isso deixaram de cumprir a sua missão. Não creio que os Doze se dessem ao trabalho de ocultar tais factos. Nem creio que tais revelações pusessem em causa a divindade de Jesus e a Verdade por ele transmitida. Embora, de facto, seria uma “bomba” na actual doutrina oficial da Igreja, se se descobrisse que Jesus tinha tido uma relação com Madalena.
- Segundo os textos apócrifos citados em “O Código Da Vinci”, existiria um “Evangelho Segundo Maria Madalena”, escrito pela própria, nos quais constaria que Cristo lhe teria confiado a Sua igreja. Ora em primeiro lugar, é muito improvável que uma mulher judia – das classes baixas, ainda para mais - soubesse ler e escrever. Além disso, numa sociedade patriarcal como a judaica, era muito improvável que uma mulher pudesse liderar uma comunidade religiosa (os tempos da Profetisa Débora pertenciam ao passado). Pois se Jesus sabia disso, e se estava consciente que os Judeus – destinatários principais da Sua mensagem - e mesmo os seus próprios discípulos não aceitariam tal coisa, como é que lhe poderia confiar a liderança da igreja?
- Há, contudo, um ponto em que a “teoria da conspiração” terá algum fundo de verdade. Na cristandade primitiva, havia quem não acreditasse na divindade de Jesus. Era o caso dos arianos e dos nestorianos, entre outras seitas. Mas não existem provas que estas fossem essas as crenças maioritárias – como o livro supõe - pelo que podemos afirmar com alguma segurança que a maior parte das primitivas igrejas cristãs acreditava que Jesus era o Filho de Deus. Existiram também algumas disputas em relação à escolha dos livros que passaram a integrar o Novo Testamento – na qual o imperador Constantino e o Bispo Eusebio de Cesareia tiveram um papel importante e algo duvidoso - mas não creio que tenha havido uma falsificação generalizada, como insinua o “Código Da Vinci”. Mas posso estar enganado, claro. Pouco se sabe sobre o cristianismo primitivo.
- “O Código Da Vinci” refere ainda que os escritos de Maria Madalena e outros do próprio Jesus estariam guardados nas ruínas do Templo de Salomão, de onde os Templários os resgataram no século XI. É um argumento facilmente questionável; porque estariam tais tesouros guardados precisamente no local mais sagrado do Judaísmo, literalmente no lendário “Santos dos Santos”? Se os sacerdotes do Templo, acérrimos inimigos de Jesus, soubessem que eles lá se encontravam – e saberiam de certeza - depressa os destruiriam. Não faz sentido. Além de que, e convém não esquecer, o Templo foi completamente arrasado pelos Romanos, no ano 70 d.C.. O edifício que os Cruzados encontraram naquele local, mil anos depois - e ao qual erradamente chamaram “Templo de Salomão” - era a actual Mesquita de Al Aqsa, local sagrado do Islão.
- Inspirando-se nessa mesma teoria, o livro refere o facto de Jesus ser descendente da Casa de David, e de Madalena, de acordo o referido evangelho apócrifo, ser proveniente da “Casa de Benjamim”. Segundo com o autor, tal significaria que Madalena era descendente da antiga dinastia de Saúl, e que tanto ela como Jesus gozariam de um estatuto especial por serem descendentes de reis. Ora a expressão “Casa de Benjamin” refere-se à Tribo de Benjamin, uma das doze tribos de Israel. A família de Saúl era apenas um dos muitos clãs da Tribo de Benjamin, pelo que a maioria dos benjaminitas não tinha qualquer parentesco com o rei Saúl, à excepção do facto de serem todos descendentes de Benjamin, filho do Patriarca Jacob (também chamado “Israel”). Logo, o facto de Madalena pertencer à Tribo de Benjamin não significa que era descendente ou sequer aparentada com Saúl. Além disso, na época de Jesus, existiam milhares de descendentes dos antigos reis da Casa de David e Saúl, e a maioria deles pertencia às camadas mais baixas da sociedade, como era o caso de José, pai adoptivo de Jesus, um simples carpinteiro. A sua importância política era nula. Um qualquer descendente dos Asmoneus ou dos Herodianos, famílias que reinaram em Israel entre os séculos II a.C. e I d.C., teria mais peso social e político que um desses esquecidos filhos de David ou Saúl, há muito privados da dignidade real.
- Um dos argumentos usados para “provar” que Jesus se teria casado, é aquele segundo o qual, se Ele fosse solteiro, os Evangelhos diriam porquê. E isto porque na sociedade judaica eram muito mal vistos aqueles que permaneciam solteiros aos trinta anos. Mas também isto tem uma explicação: é provável que Jesus tenha vivido alguns anos como eremita ou como membro de algum grupo essénio (por exemplo, Santo Agostinho escreveu que, na sua época, a tradição esotérica fazia menção dessa fase da vida de Cristo). E sabemos que os essénios viviam em comunidade, quase que fazendo votos de castidade e pobreza. Além disso, aos olhos dos contemporâneos, Jesus era mais um dos muitos “rábis” e profetas que pululavam pela Judeia daquele tempo, e esses “homens santos” – como João Baptista, por exemplo – eram, provavelmente, na sua maioria celibatários. Não havia, por isso, nada de estranho no facto de ele ser ainda solteiro.
- Segundo a obra, depois da morte de Jesus, Madalena teria fugido com a criança para o Sul da Gália, onde existia uma importante comunidade judaica. Na fuga teria contado com a ajuda de José de Arimateia, “tio de Jesus”. Ora segundo os dados de que dispomos, José de Arimateia era um aristocrata membro do Sinédrio, e os evangelhos “oficiais” não o referem como tio de Jesus. Se ele fosse parente de Jesus, com certeza de João, Marcos, Mateus e Lucas fariam referência ao parentesco, até porque não havia motivos para que esse parentesco fosse omitido numa eventual falsificação.
- Além de que não se compreende como é que um aristocrata como José de Arimateia poderia ter um sobrinho relativamente pobre, como Jesus. E se era tio de Jesus, seria irmão de José? E nesse caso, porque é que os dois irmãos tinham o mesmo nome próprio? Ou seria irmão de Maria? Mas nenhum dos Evangelhos diz que José e Maria fossem provenientes de Arimateia, de onde o referido aristocrata era oriundo...
- O livro refere ainda que Madalena e o filho de Jesus permaneceram nas Gálias, onde a sua descendência sobreviveu até ao século V, altura em que se fundiu com a dinastia merovíngia. Ora se a Igreja primitiva perseguia implacavelmente Maria Madalena e tudo o que ela significava, porque é que os imperadores romanos cristãos, que se imiscuíam nas questões religiosas – como Constantino, Constâncio II, Teodósio, etc – não lhes foram no encalço? Os imperadores romanos cristãos perseguiram impiedosamente os “heréticos”, e um grupo que se intitulava “seguidor de Maria Madalena” não ficaria incólume à repressão.
Quanto ao papel da Opus Dei no enredo, compreendo que uma organização poderosa e algo misteriosa como a Opus Dei possa excitar facilmente a imaginação de um romancista, principalmente se este não for católico.
As outras questões levantadas pela obra – as “mensagens” existentes na arquitectura medieval e nas obras de Leonardo da Vinci, etc – não alteram o essencial, que é o facto de não existirem provas de que Jesus tenha tido uma relação com Madalena, da qual nasceu um filho. É uma questão de fé. O facto de Leonardo e outros acreditarem nisso, por muito ilustres que sejam, não constitui prova alguma. Assim como todos os simbolismos existentes no enredo que, não obstante tornarem a narrativa extremamente interessante, não sustentam a tese a respeito de Jesus e Madalena.
Em relação ao mítico “Graal”, a teoria de que o termo se referiria a Madalena é, sem dúvida, interessante. Mas há que ter em conta que o Graal não tem um papel central na fé cristã. Tem mais a ver com as tradições célticas, talvez mesmo com os rituais druídicos. E ainda que, de facto, os contos de cavalaria que narravam a demanda do Graal se referissem a Maria Madalena, não deixariam de traduzir apenas uma crença pessoal dos seus autores. O facto de uma qualquer irmandade secreta acreditar que Jesus teve um filho de Madalena não significa que tal correspondesse à verdade. O mesmo se pode dizer dos documentos secretos por ela preservados que, a existirem realmente, poderiam ser uma falsificação do século XI.
Além disso, a tradição gnóstica e os ditos “evangelhos apócrifos” não provam rigorosamente nada. Apenas representam tradições e modos de pensar diferentes da tradição católica. Aqueles que acusam a Igreja de pretender suprimir os “evangelhos apócrifos”, por a sua mensagem ser supostamente incómoda, esquecem-se que se a Igreja desse crédito a esses escritos – que, além disso, são contraditórios e incoerentes entre si - teria de suprimir e substituir todos os livros do actual Novo Testamento. Ou seja, a Igreja teria sempre que escolher quais escritos seriam os mais fiéis à mensagem de Jesus, sacralizando uns em detrimento de outros.
Creio, por isso, que este livro deve ser lido pelo que é – um bom thriller, bastante bem escrito e construído – e não por aquilo que algumas pessoas gostassem que ele fosse.
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