RECRISTIANIZAR? O Zé Filipe, conterrâneo da
Terra da Alegria, escreveu um post no seu (excelente)
blog a respeito de um recente artigo de Ana Vicente no
Público. Entre outras coisas, pode ler-se o seguinte:
"Ana Vicente publica no "Público" um texto interessante e pertinente. Chama-se "Os melhores alunos do cristianismo" e fala sobre a Europa. Essa Europa que continuamos a ouvir dizer ser necessário "recristianizar". Recristianiquê? A verdade é que a Europa é dos melhores sítios para se viver hoje. E é-o, como diz Ana Vicente porque os valores cristãos impregnaram na nossa cultura: "(...)as populações que vivem na Europa, quer o reconheçam ou não, foram beber nos Evangelhos os seus valores mais preciosos: a liberdade, a igualdade, a fraternidade, a justiça, a paz. É por isso que podemos afirmar, sem qualquer hesitação, que a Europa nunca foi tão cristã como agora.» O "re" de "recristianizar" é particularmente absurdo. Alguém pretende voltar ao passado?" Estou de acordo com o Zé Filipe quando diz que a Europa de hoje é um dos melhores locais para se viver, e ainda bem que se deram todas as conquistas sociais que ele refere no seu post.
Todavia, por outro lado, penso que é de facto necessário "recristianizar" a Europa (ou melhor, "cristianizar"). E isso não passa por voltar ao obscurantismo de outrora - causado pela Igreja, mas também e principalmente pelas condições sociais e civilizacionais daqueles tempos -, mas antes pela difusão de outros valores cristãos tão importantes como os referidos no texto do Zé Filipe, como a integridade, a pureza de actos e intenções, a honestidade e a generosidade.
Outro valor importante é o da devoção, pois enquanto cristãos não podemos ter dois senhores, tendo de escolher entre Deus e o dinheiro, a fama, a ambição pessoal, e tudo o que nos afaste do Bem (e, por consequência, de Deus).
Também a tolerância deve ser difundida, pois há muita falsa tolerância no discurso dominante na Europa e nos hábitos dos europeus "politicamente correctos"... por exemplo, muitas pessoas se revoltam (e bem) quando ouvem anedotas racistas, mas acham normal reproduzir as maiores barbaridades e preconceitos contra o cristianismo ou outras religiões. A mesma indiferença com que nos anos 20 se ouviam anedotas sobre judeus e com que as ideias anti-semitas eram encaradas (embora, evidentemente, não queira banalizar o anti-semitismo e o Holocausto com esta analogia).
Os europeus sempre tiveram um forte pendor para o totalitarismo. Começou com o Baixo Império romano, e continuou séculos fora até aos nossos dias, com o cesaro-papismo, a Inquisição, a intolerância religiosa (católica e protestante, principalmente), o "despotismo iluminado", o jacobinismo, o marxismo-leninismo, o estalinismo, o nazismo e o fascismo. Pelo meio, filósofos como Rousseau e Marx defenderam ideias totalitárias que ainda hoje nos influenciam. Basta comparar a filosofia anglo-saxónica com a do "continente" para perceber as diferenças de perspectiva entre as duas correntes, bem como para compreender como os europeus "continentais" sempre subjugaram a liberdade individual - de expressão, de pensamento, cívica e económica -, a princípios considerados mais "elevados", e geralmente utópicos, que pretensamente justificavam as maiores atrocidades.
Esta postura persiste hoje em grande parte da intelectualidade e das élites europeias. E o "politicamente correcto" actual, com os seus preconceitos anti-clericais, as suas causas pretensamente "libertárias", a sua crença de que a felicidade do Homem consegue-se apenas com confortos materiais e o seu relativismo desenfreado, constitui uma nova forma de ditadura do discurso, um totalitarismo "soft" que ostraciza quem não partilha das suas ideias.
Esta nova forma de totalitarismo é visível na Europa, fazendo com que se chegue ao ponto de demitir um comissário europeu por este ter crenças religiosas contrárias ao pensamento único. Bem lá no fundo, é ainda a mesma intolerância do tempo da Inquisição e das Guerras de Religião, que fez com que milhões de europeus partissem para a América. E uma das características admiráveis da América é precisamente o facto de nela sempre ter existido liberdade de pensamento, de crença e de expressão.
Por exemplo, a Constituição de 1776 estabelece a separação entre religião e Estado, não com a intenção de remeter as crenças para as sacristias, como se fez na Europa, mas sim com o objectivo de proteger as confissões religiosas das intromissões e manipulações por parte do poder temporal.
A felicidade de um cristão não reside no usufruto de bens materiais, nos prazeres da vida terrena ou numa existência hedonista. A doutrina cristã não se reduz a esses valores de "liberdade, igualdade, fraternidade, justiça e paz". Se assim fosse, se a doutrina de Jesus se resumisse a estes conceitos, Ele teria sido um líder político e não o Filho de Deus que se fez homem, morreu e ressuscitou. Ora Cristo foi condenado e crucificado por duas razões aparentemente paradoxais entre si: por um lado, foi condenado porque alguns viam nele um factor de perturbação política e social - que era, de facto, embora o Seu Reino seja apenas espiritual; por outro lado, porque ele próprio se recusou a ser um líder político, o tal Messias guerreiro por cuja vinda Judas Iscariotes e os Zelotas ansiavam.
A doutrina cristã trancende em muito esses valores sociais de "liberdade, igualdade, fraternidade, justiça e paz", citados por Ana Vicente. Cristo foi muito mais além, defendendo o amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Por amor ao Pai e ao próximo, Jesus sacrificou a própria vida. É essa capacidade de se entregar por Deus e pelos outros, bem como a crença numa vida eterna junto de Deus, que deve distinguir os cristãos.
Os ensinamentos de Jesus acarretam, por isso, dois conceitos completamente opostos à mentalidade dominante europeia; são eles a aceitação do sacrifício e a capacidade de entrega total a Deus e ao próximo. Ora não me parece que estes princípios centrais do cristianismo sejam partilhados por muitos europeus.
Além disso, o Cristianismo não é uma teoria social ou uma ideologia, mas sim uma crença religiosa a que está associado um sistema ético e moral (pessoal e social). O que constitui mais um motivo para não misturar o Cristianismo com questões políticas ou com ideologias. Ao contrário do que alguem disse, Cristo não foi o "primeiro marxista da História". Cristo não era um político.
Vivemos numa era demasiado materialista, que nos afasta de Deus, que tudo relativiza e que transporta as pessoas para um vazio completo. O pós-modernismo oferece às pessoas niilismo e hedonismo, ao invés de lhes transmitir esperança e uma vida com verdadeiro sentido.
As pessoas procuram a felicidade na satisfação dos prazeres terrenos e na obtenção de riquezas e bens materiais. Por exemplo, a nossa sociedade divinizou a relação amorosa, a ponto de a maioria das pessoas canalizar para ela todas as suas esperanças de felicidade. Outros procuram-na na obtenção de riquezas, no sexo, na aquisição de "status", na fama, etc. Agir desta forma significa procurar "ídolos" - no sentido que o Antigo Testamento dá ao termo - que nos afastam de Deus e que nos escravizam, ao invés de nos libertar.
E o Homem liberta-se sempre que se vira para Deus, pois só aí se assume na sua plenitude. Enquanto escravo dos prazeres e das paixões, o Homem perde a sua autonomia. Mas quando se volta para Deus, torna-se completamente livre, pois o mundo e os seus males não mais o podem afectar, além de que Deus nos fez para sermos livres.
Se, enquanto cristãos, acreditamos que a vida que realmente interessa não é esta pobre existência terrena, mas sim a que há de vir, então nada temos a temer. E a taxa de alfabetização, a esperança média de vida ou os outros confortos enunciados por Ana Vicente são importantes, mas não mais do que realmente são. Evidentemente, isto não é fácil de entender e muito menos de assimilar. Todavia, o Cristianismo é uma religião de ruptura, que será tudo menos fácil.
Creio que cada um deve poder viver como bem entender, desde que não prejudique a liberdade dos outros; mas penso que dos Cristãos se espera que dêem testemunho da sua fé no Ressuscitado, através de actos e palavras. A evangelização é isso mesmo: dar testemunho.
O Cristianismo é muito mais do que um mero "wishfull thinking" ou do que uma crença num mundo melhor; ser cristão implica entrega total, ir contra a corrente se necessário, aceitar o sacrifício se este nos for pedido, perdoar a quem nos faz mal, ser fiel à verdade, ainda que tal nos prejudique, e praticar o Bem.