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terça-feira, agosto 16, 2005

RECRISTIANIZAR (II)O Zé Filipe respondeu ao meu post anterior. Estamos de acordo em vários pontos, embora sob perspectivas algo distintas.

O Zé enumerou três questões chave:

"Uma: hedonismo vs. aceitação do sacrifício. A "aceitação do sacrifício" que faz parte da mensagem cristã é difícil de entender na nossa sociedade consumista. Mas é preciso explicar que não é o sacrifício por si só que tem valor. Ele tem valor se for uma oferta, quer dizer, se for feito com um fim que o ultrapasse. Pregar o sacrifício por si só tem pouco sentido. Depois de tantos anos a ouvir que o prazer era pecado, é natural que agora ninguém ligue à questão do sacifício. Por isso tenho muitas dúvidas quando oiço aqueles discursos que contrapõem o "ser" e o "ter", como se os cristãos fossem umas almas imateriais que passam sem um bom almoço."

Claro que o sacrifício de que falo não é o dos penitentes que se auto-flagelam nas Filipinas ou dos peregrinos que vão a Fátima de joelhos (embora me pareça que mesmo este, aos olhos de Deus, não deixará de ter algum valor, dependendo da intenção). Refiro-me a sacrifícios como partilhar o nosso "pão" com os outros, ainda que fiquemos a perder com isso; a sofrer de forma resignada o mal que nos é feito, se isso for útil a um bem maior ou a um objectivo mais importante que o nosso próprio bem estar; a abdicarmos de pequenos prazeres da vida, quando estão em causa os princípios por que nos regemos ou o bem estar de outrém; a ser fiel aos nossos compromissos conjugais, familiares ou sociais, ainda que isto nos seja difícil. Por exemplo, o sacrifício do marido que se mantém fiel à esposa (e vice-versa), mesmo quando a tentação é grande. Ou daquela pessoa que não abandona os amigos caídos em desgraça, mesmo que isso prejudique a sua carreira política ou profissional.

Fazer este género de sacrifícios implica abdicarmos do nosso próprio bem estar em prol dos outros. São dádivas de amor ao próximo e a Deus.

"Duas: a "Entrega total a Deus e ao próximo". Parece-me que falta concretizar e discutir o que é que significa hoje essa entrega a Deus e ao próximo. E aqui voltamos a questões políticas: solidariedade, atenção às situações de pobreza, solidariedade intergeracional, problemas ecológicos, terrorismo, conflitos e situações de miséria subsistentes,... A Europa tem um papel essencial de ajudar ao desenvolvimento de outros povos. Para dar um exemplo, a Igreja devia pregar o sacrifício de acabarmos com os subsídios à nossa agricultura para abrir o comércio aos produtos dos países subdesenvolvidos."

Concordo, embora ressalvando novamente que o cristianismo é uma crença religiosa e não uma ideologia política.

"Três: discordância teológica. Não concordo que "enquanto cristãos, acreditamos que a vida que realmente interessa não é esta pobre existência terrena, mas sim a que há de vir". Caso assim fosse, de facto, a taxa de alfabetização e a esperança média de vida não eram para nós preocupações. Mas são. A mensagem cristã é clara quanto a isto: o Reino de Deus -- a dimensão de Deus -- não é uma recompensa de bom comportamente no final desta vida miserável. Entrar na dimensão de Deus, viver aqui e hoje a boa notícia anunciada por Cristo implica o empenho total nos problemas deste mundo. Afinal, se acreditamos que o próprio Deus veio ao mundo, é porque o mundo é um local muito especial. O Reino de Deus começa aqui e hoje, nesta nossa magnífica existência terrena."

Posso estar enganado - não sou especialista -, mas parece-me que a doutrina cristã se baseia na crença na ressurreição e na vida eterna junto de Deus. Nesse sentido, esta existência terrena será meramente transitória, pois a verdadeira felicidade de um cristão não se encontra no mundo. Por exemplo, se Jesus acreditasse numa felicidade meramente terrena, não teria voluntariamente sofrido a morte (teria antes assumido o papel de Messias político que muitos dele esperavam); nem tão pouco os milhões de cristãos que nos últimos dois mil anos deram a vida por aquilo em que acreditavam, confiantes na ressurreição.

O que não significa que não procuremos fazer deste mundo o melhor dos mundos possíveis, porque o objectivo da doutrina de Jesus é construir um mundo mais justo, mais solidário, mais pacífico, colocando Deus no centro da vida das pessoas e tendo em vista o Reino que há de vir e a vida eterna junto de Deus.

E quando referi a taxa de alfabetização e a esperança média de vida, quis ilustrar o seguinte: por um lado, é possível ser feliz sendo analfabeto e vivendo menos que a esperança média de vida. A verdadeira felicidade não reside nos bens materiais, no "status" ou no nível cultural (basta comparar a taxa de depressões da Suécia com a de países latino-americanos ou africanos).

Por outro, a taxa de alfabetização e a esperança média de vida são importantes, mas para um cristão não são mais que Deus, a Boa Nova de Jesus ou a vida eterna. Os confortos terrenos são importantes, mas acessórios e dispensáveis, se tal for necessário para a nossa salvação. Foi isso que quis ilustrar.

Em resumo, penso que a Europa de hoje absorveu algumas noções cristãs, mas não é hoje mais cristã que era há alguns séculos. Aliás, a Europa nunca foi verdadeiramente cristã.

Ainda a respeito da Europa, e no seguimento do post anterior, devo acrescentar que não concordo com o remeter das crenças para as sacristias, da forma como tal foi feito na Europa. Hoje em dia, encara-se a religião como uma coisa de que não fica bem falar. Por exemplo, um político pode dizer-se publicamente deste ou daquele clube de futebol - muitas vezes em tons fanáticos e estúpidos q.b. -, mas não pode afirmar-se na sua condição de crente. Penso que este modo de agir revela uma forma doentia de lidar com a religião, confundindo-se o necessário laicismo com o ateísmo de Estado.

Evidentemente, a religião não deve imiscuir-se em questões políticas. Mas o Estado deveria reconhecer o papel positivo desempenhado pelas diferentes crenças, em pé de igualdade entre si.