respublica

sexta-feira, setembro 03, 2004

“O BARCO DO ABORTO” Não pretendo escrever novamente sobre a questão do aborto, mas sim sobre o chamado “Barco do Aborto”. Creio que devemos ter a lucidez de estabelecer uma clara distinção entre, por um lado, a questão do aborto propriamente dita e, por outro, esta iniciativa da “Women on Waves”. Uma coisa não tem a ver com a outra, e é pena que tanta gente as confunda, seja de forma deliberada ou inconsciente.

Em minha opinião, todo este “folclore” em volta do “Borndiep” é fruto do histerismo de um grupelho radical, devidamente acolitado por certos demagogos da extrema-esquerda pseudo-libertária, com a benção da nossa comunicação social pretensamente “independente”. Senão vejamos:

1. Se o que estes senhores realmente pretendem é “realizar um debate sobre o Aborto”, como afirmam, com certeza que não necessitam de um barco para o fazer. Como referiu o nosso primeiro-ministro, são livres de vir a terra para discutir o que bem entenderem.

2. Mas não podem acostar uma embarcação que, de acordo com o próprio website oficial da “Women on Waves”, tem como missão realizar abortos em países onde esta prática não é permitida.

3. Além disso, segundo a própria lei holandesa, a “clínica” a bordo do “Borndiep” não está autorizada a fazer abortos a uma distância superior a 25 milhas marítimas de Roterdão, por receio de eventuais complicações na saúde das mulheres. Ou seja, o “Borndiep” não é muito diferente das clínicas de aborto clandestino e daquele “vão de escada”, que os “pro-choice” afirmam querer erradicar.

4. Se realmente se verificasse um “debate” a bordo da embarcação, existiria liberdade de exprimir opiniões contrárias, que é essencial para que haja uma verdadeira discussão? A avaliar pelo ar “militante” e intransigente das activistas, cheias da sua pretensa razão e superioridade moral, parece-me que se alguém se pronunciasse contra o Aborto seria imediatamente lançado ao mar...

5. Interrogo-me sobre o que a aconteceria se um barco “anti-aborto” quisesse atracar em Roterdão para “debater” o tema. Com certeza que muitos daqueles que agora pedem “liberdade de expressão” lá estariam para impedir a atracagem, a manifestar-se contra os alegados “fascistas”.

6. Se o próprio site da “Women On Waves” afirma claramente o que o barco vinha cá fazer, é estranho que os organizadores deste “circo” digam agora que não pretendiam violar a lei portuguesa. Depois dizem que os hipócritas são os “pro-life”!

7. Muitos juristas concordam com a interpretação que o Executivo fez da Lei. O próprio governo holandês considera legal a decisão de não deixar atracar a embarcação. Quanto a mim, não sou formado em Direito, mas parece-me claro que a “Women on Waves” pretendia violar a lei portuguesa. Ainda há poucos dias, os responsáveis das associações que convidaram o “Borndiep” a visitar Portugal, diziam publicamente que as mulheres subiriam a bordo para abortar. Ora se isso não é uma violação da actual lei, então o que é? Claro que depois, quando souberam da decisão do Governo, disseram precisamente o contrário, dando o dito por não dito. Ora se acreditam realmente na causa que defendem, que sejam coerentes!

8. Portugal é um país democrático e civilizado. Não precisamos de lições de democracia ou de direitos humanos, venham elas de quem vierem. Se a “Women on Waves” quer realmente ajudar as mulheres oprimidas, que leve um ar de sua graça para países como Marrocos, a Líbia, a Síria, o Irão ou o Paquistão. Isso sim, seria um louvável acto de coragem.

9. Esta iniciativa é uma mera “fantochada”que, além de extremar as posições sobre a questão e anular qualquer tentativa de um debate sério sobre o assunto, prejudica a causa que diz defender.

10. Embora legalmente correcta, a atitude do Governo foi exagerada. E enviar dois navios de guerra para vigiar o “Borndiep” foi um gesto desproporcionado.


Seria bom que por parte de ambos os lados existisse seriedade, moderação e respeito pela lei e pelas instituições democráticas. O aborto clandestino é ainda um grave problema no nosso país, mas não atinge nem um décimo das proporções que assumia há vinte ou trinta anos atrás. Portugal mudou muito entretanto, e é pena que certa extrema-esquerda, à falta de outras causas porque lutar, se agarre desta forma à questão do aborto.

Gostava de ver estas pessoas lutarem para que as mulheres não tivessem que abortar, com a instituição de leis protectoras da maternidade e de uma verdadeira educação sexual. Muita gente pensa que esta tem a ver apenas com ensinar os miúdos a ter relações “seguras”, mas o que está verdadeiramente em causa é transmitir valores e modos de vida saudáveis às crianças e adolescentes. Não basta ensinar os adolescentes a usar o preservativo; há que lhes mostrar que uma vida hedonista e irresponsável tem os seus riscos (tal como não conduz à verdadeira felicidade, embora isso seja uma questão de opinião). Claro que, para quem não tem valores, isso não é necessário... ora essas pessoas não entendem que uma sociedade sem valores estará condenada à extinção.

É lamentável, também, que tanto os “pro-life”, como os “pro-choice”, tenham discursos profundamente “maniqueístas”, como se a Razão, a inteligência e a bondade existissem apenas de um dos lados desta complexa questão. É por isso que quase todos os debates sobre a questão se transformam em “diálogos de surdos” que, além de infrutíferos, confundem e desinformam a opinião pública.

Os media têm uma importante responsabilidade nesta discussão: além de não serem totalmente imparciais – têm uma clara e indisfarçável preferência pelos “pro-choice”, exagerando números relativos ao aborto clandestino, omitindo dados científicos “incómodos” sobre a vida intra-uterina, etc -, atribuem demasiada atenção a iniciativas como esta da “Women on Waves”, dando-lhe uma importância exagerada.