respublica

segunda-feira, fevereiro 02, 2004

A DIVINA COMÉDIA encontrei um site que contém uma versão em prosa da "Divina Comédia", de Dante. Transcrevi aqui parte do Canto XVIII do "Purgatório", onde se pode ler um interessante discurso sobre o livre arbítrio:

"Depois de terminar o seu discurso, o grande mestre agora me olhava, procurando saber se eu estava satisfeito com a sua explicação. E eu já desejava fazer-lhes novas perguntas, mas então pensei: "Será que essas minhas perguntas sem fim o aborrecem?". Não pude alimentar mais tal pensamento, pois Virgílio logo percebeu como eu me sentia e me incentivou a falar. Então eu perguntei:

- Mestre a tua explicação me foi muito clara, mas te peço que me definas o que é esse amor, que defendes como sendo a fonte de todo o correto agir e o seu oposto.

- Então presta atenção - respondeu-me - e terás esclarecido o erro dos cegos que decidem ser guias. A alma, que é criada com capacidade de amar, move-se para o que lhe dá prazer. Vossos sentidos extraem do mundo real uma imagem que é exibida internamente. É esta imagem que atrai a alma. E se ela é atraída, à imagem então se inclina, e esta inclinação é o amor, que faz parte de vossa natureza. E assim como o fogo se move para as alturas, buscando a sua própria natureza, da mesma forma vossa alma busca a coisa amada e não descansa até encontrá-la e dela usufruir. Podes agora entender como estão enganados aqueles que acham que qualquer amor é, em si, coisa louvável. Talvez assim pensem por acharem que sua essência é sempre boa, mas nem todo selo é bom, ainda que boa seja a sua cera.

- Teu discurso me esclareceu muitas dúvidas - respondi-lhe - mas ao mesmo tempo acrescentou outras. Se o amor vem de uma fonte externa, a alma não pode ter culpa em aceitá-lo e não pode ser, por essa razão, julgada culpada em segui-lo.

- Eu só posso te explicar aquilo que minha razão puder compreender - respondeu Virgílio -. Além da razão, terás que buscar o auxílio de Beatriz, pois se trata de obra da fé. Toda essência, esteja ela ligada ou não à matéria, tem a sua própria virtude, que não é percebida a não ser por seus efeitos, como o verde de uma planta revela-nos a sua essência viva. Não é, portanto, possível saber a origem das vossas inclinações ou do vosso instinto. Esses desejos inatos não são, portanto, nem condenáveis nem louváveis. Mas, para manter vossos instintos sob controle, tens uma virtude inata que, munida da razão, vos aconselha. É neste princípio que repousa o vosso poder de julgamento, que é capaz de rejeitar o mau amor e acolher o bom. Aqueles que, através do raciocínio, investigaram este assunto profundamente, perceberam essa liberdade inata e a partir dela, deixaram suas doutrinas morais e éticas no mundo. Então, posto que por necessidade surja em vós qualquer amor, em vós também está o poder de dominá-lo. Essa é a nobre virtude que Beatriz entende por livre arbítrio. Lembra-te disto quando tu a encontrares."


Nota: o texto foi retirado deste site, da autoria de Hélder da Rocha. A tradução e adaptação para prosa são também da sua responsabilidade.