NAPOLEÃO No editorial do “Público” do passado domingo, José Manuel Fernandes (J.M.F.) escreveu o seguinte, a respeito das comemorações do segundo centenário da coroação imperial de Napoleão Bonaparte:
"A França - e quase mais ninguém - está a comemorar a sagração de Napoleão Bonaparte como Imperador, a 2 de Dezembro de 1804. É uma celebração sui-generis, assinalada pela edição de dezenas de livros e inúmera memorablia, mas em que nalguns colocam um grão de sal: afinal o Bonaparte Imperador foi, também, o Bonaparte ditador (ver PÚBLICA). O homem que terminou com o caos pós-revolucionário com o 18 de Brumário, o general que tinha defendido a França das monarquias europeias que se sentiam ameaçadas pelo novo regime, o cônsul que presidira à elaboração do Código Civil ainda hoje celebrado em certos meios jurídicos, assumiu nesse dia poderes absolutos e exerceu-os de forma implacável. A censura, as prisões arbitrárias, a tortura e as execuções sumárias tornaram-se correntes. O sonho imperial levou-o à conquista da Europa, onde foi colocando membros da família nos diferentes tronos ao mesmo tempo que os seus homens pilhavam e arrasavam, sem piedade ou restrição. Mais: o pouco respeito que tinha pela vida dos soldados que comandava foi em crescendo até à campanha da Rússia, onde entrou à frente de 610 mil homens e de onde regressou com apenas 100 mil e a única "glória" de se ter sentado no trono do czar.
Compreender a forma ambivalente, mas ainda heróica, como os franceses celebram o último general que levou os seus exércitos à vitória - a partir de então a França não ganhou sozinha ou perdeu mesmo todas as guerras em que se envolveu, desde a de 1871 com a Prússia à da Argélia, passando pelas duas Guerras Mundiais e pela Indochina - ajuda a compreender o que é hoje aquele país e em que memórias se alicerça.
(…) Custa pois a aceitar a ambivalência com que ainda é olhado. E menos ainda a compreender a nostalgia que inspira em franceses "iluminados", como Dominique de Villepin, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e autor de um livro sobre os "Cem Dias" (o período que mediou entre o regresso da ilha de Elba e a derrota de Waterloo) que, num francês erudito e gongórico, é todo ele um exercício em torno da grandeza perdida da França."
Concordo com J.M.F. Napoleão não era flor que se cheirasse. Era autocrático, cruel, despótico e sem escrúpulos. Além de ser um magnífico estratega militar – embora se limitasse a ser um “bom aluno” dos mestres militares do século XVIII, e não propriamente um inovador (a nível teórico) -, era também um genial gestor de imagem. Napoleão soube camuflar as derrotas – no Egipto e na Península Ibérica -, e exagerar a genialidade dos seus feitos e capacidades (que eram de facto brilhantes, apesar de tudo).
Mas penso que, no quadro dos governantes e dirigentes da época, Napoleão até era dos mais humanos. Os reis absolutistas eram ainda mais cruéis, corruptos e gananciosos; os seus governos baseavam-se ainda mais no nepotismo, na bajulação e nas lutas entre camarilhas palacianas. Se Napoleão foi tão odiado naquela época, não foi por ser um tirano sanguinário – comparado com os soberanos do tempo, não era particularmente cruel -, mas sim porque tinha mais poder que todos os outros. E porque era, de facto, genial. Napoleão arriscava fazer o que ninguém tinha antes feito, e isto quer no plano militar, quer no domínio da política e dos assuntos públicos. Dotados do seu poder e génio, outros teriam sido muito mais despóticos, cruéis e sanguinários.
Há uma história que ilustra esse “lado humano” do imperador: por volta de 1809, um jovem estudante alemão atentou contra a vida de Napoleão. Detido pela guarda imperial, o jovem foi conduzido à presença de Bonaparte, que procurou descortinar e compreender as razões que levaram o jovem a atentar contra a sua vida. O imperador interrogou pessoalmente o estudante, que lhe disse estar a lutar pela libertação da sua pátria ocupada. Sensibilizado pela pureza dos ideais do jovem, Napoleão prometeu-lhe o perdão e a liberdade, se ele demonstrasse arrependimento. Mas o alemão jurou que, se Napoleão o libertasse, voltaria a atentar contra a sua vida. E só depois de muitas tentativas vãs, Napoleão desistiu de o tentar convencer, ordenando a sua execução por um pelotão de fuzilamento. Teriam Hitler ou Estaline, tiranos que J.M.F. compara a Napoleão, sequer pensado em poupar a vida daquele jovem estudante?
Convém ainda recordar que foi a Europa absolutista coligada - sob a batuta da constitucional Inglaterra - que desde cedo se virou contra a França Revolucionária. Não foi Napoleão que abriu as hostilidades. Além disso, e quer queiramos quer não, foram as suas tropas que espalharam pela Europa os ideais de liberdade e igualdade que hoje partilhamos.
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P.S.: este artigo de J.M.F. contém algumas incorrecções históricas: Napoleão não foi o “último general que levou os exércitos franceses à vitória”. J.M.F. esquece-se das muitas campanhas africanas dos séculos XIX e XX, e da guerra contra a Áustria (1859). E se é verdade que a França nunca mais venceu uma grande guerra sozinha, também o é que o mesmo se passou com as maioria das outras potências (a Guerra das Falkland constitui a excepção). Os Estados Unidos, por exemplo, apenas venceram sozinhos três guerras, em toda a sua existência como nação independente: a Segunda Guerra da Independência (1812/1814), a Guerra com o México (1848) e a Guerra Hispano Americana (1898).
"A França - e quase mais ninguém - está a comemorar a sagração de Napoleão Bonaparte como Imperador, a 2 de Dezembro de 1804. É uma celebração sui-generis, assinalada pela edição de dezenas de livros e inúmera memorablia, mas em que nalguns colocam um grão de sal: afinal o Bonaparte Imperador foi, também, o Bonaparte ditador (ver PÚBLICA). O homem que terminou com o caos pós-revolucionário com o 18 de Brumário, o general que tinha defendido a França das monarquias europeias que se sentiam ameaçadas pelo novo regime, o cônsul que presidira à elaboração do Código Civil ainda hoje celebrado em certos meios jurídicos, assumiu nesse dia poderes absolutos e exerceu-os de forma implacável. A censura, as prisões arbitrárias, a tortura e as execuções sumárias tornaram-se correntes. O sonho imperial levou-o à conquista da Europa, onde foi colocando membros da família nos diferentes tronos ao mesmo tempo que os seus homens pilhavam e arrasavam, sem piedade ou restrição. Mais: o pouco respeito que tinha pela vida dos soldados que comandava foi em crescendo até à campanha da Rússia, onde entrou à frente de 610 mil homens e de onde regressou com apenas 100 mil e a única "glória" de se ter sentado no trono do czar.
Compreender a forma ambivalente, mas ainda heróica, como os franceses celebram o último general que levou os seus exércitos à vitória - a partir de então a França não ganhou sozinha ou perdeu mesmo todas as guerras em que se envolveu, desde a de 1871 com a Prússia à da Argélia, passando pelas duas Guerras Mundiais e pela Indochina - ajuda a compreender o que é hoje aquele país e em que memórias se alicerça.
(…) Custa pois a aceitar a ambivalência com que ainda é olhado. E menos ainda a compreender a nostalgia que inspira em franceses "iluminados", como Dominique de Villepin, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e autor de um livro sobre os "Cem Dias" (o período que mediou entre o regresso da ilha de Elba e a derrota de Waterloo) que, num francês erudito e gongórico, é todo ele um exercício em torno da grandeza perdida da França."
Concordo com J.M.F. Napoleão não era flor que se cheirasse. Era autocrático, cruel, despótico e sem escrúpulos. Além de ser um magnífico estratega militar – embora se limitasse a ser um “bom aluno” dos mestres militares do século XVIII, e não propriamente um inovador (a nível teórico) -, era também um genial gestor de imagem. Napoleão soube camuflar as derrotas – no Egipto e na Península Ibérica -, e exagerar a genialidade dos seus feitos e capacidades (que eram de facto brilhantes, apesar de tudo).
Mas penso que, no quadro dos governantes e dirigentes da época, Napoleão até era dos mais humanos. Os reis absolutistas eram ainda mais cruéis, corruptos e gananciosos; os seus governos baseavam-se ainda mais no nepotismo, na bajulação e nas lutas entre camarilhas palacianas. Se Napoleão foi tão odiado naquela época, não foi por ser um tirano sanguinário – comparado com os soberanos do tempo, não era particularmente cruel -, mas sim porque tinha mais poder que todos os outros. E porque era, de facto, genial. Napoleão arriscava fazer o que ninguém tinha antes feito, e isto quer no plano militar, quer no domínio da política e dos assuntos públicos. Dotados do seu poder e génio, outros teriam sido muito mais despóticos, cruéis e sanguinários.
Há uma história que ilustra esse “lado humano” do imperador: por volta de 1809, um jovem estudante alemão atentou contra a vida de Napoleão. Detido pela guarda imperial, o jovem foi conduzido à presença de Bonaparte, que procurou descortinar e compreender as razões que levaram o jovem a atentar contra a sua vida. O imperador interrogou pessoalmente o estudante, que lhe disse estar a lutar pela libertação da sua pátria ocupada. Sensibilizado pela pureza dos ideais do jovem, Napoleão prometeu-lhe o perdão e a liberdade, se ele demonstrasse arrependimento. Mas o alemão jurou que, se Napoleão o libertasse, voltaria a atentar contra a sua vida. E só depois de muitas tentativas vãs, Napoleão desistiu de o tentar convencer, ordenando a sua execução por um pelotão de fuzilamento. Teriam Hitler ou Estaline, tiranos que J.M.F. compara a Napoleão, sequer pensado em poupar a vida daquele jovem estudante?
Convém ainda recordar que foi a Europa absolutista coligada - sob a batuta da constitucional Inglaterra - que desde cedo se virou contra a França Revolucionária. Não foi Napoleão que abriu as hostilidades. Além disso, e quer queiramos quer não, foram as suas tropas que espalharam pela Europa os ideais de liberdade e igualdade que hoje partilhamos.
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P.S.: este artigo de J.M.F. contém algumas incorrecções históricas: Napoleão não foi o “último general que levou os exércitos franceses à vitória”. J.M.F. esquece-se das muitas campanhas africanas dos séculos XIX e XX, e da guerra contra a Áustria (1859). E se é verdade que a França nunca mais venceu uma grande guerra sozinha, também o é que o mesmo se passou com as maioria das outras potências (a Guerra das Falkland constitui a excepção). Os Estados Unidos, por exemplo, apenas venceram sozinhos três guerras, em toda a sua existência como nação independente: a Segunda Guerra da Independência (1812/1814), a Guerra com o México (1848) e a Guerra Hispano Americana (1898).
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