respublica

sexta-feira, fevereiro 27, 2004




ECCE HOMO (II) Visitei o site oficial do polémico filme "A Paixão de Cristo", de Mel Gibson, onde encontrei o seguinte resumo:

"Por volta do ano 30 D.C, um obscuro carpinteiro judeu chamado Jesus de Nazaré começou a pregar em público e a proclamar, na província romana da Palestina, a vinda de um "Reino de Deus". Durante séculos, o povo judeu esperava a vinda prometida de um redentor conhecido como o Messias - um personagem que restauraria a sua antiga dignidade e que libertaria a sua pátria sagrada de todos os males e desesperos. Muitos acharam que Jesus era esse Messias. Além de doze discípulos que constituiam seu grupo mais íntimo, Jesus começou a atrair um grande séquito proveniente das classes populares da Galiléia e Judéia, que o aclamaram como seu Messias e rei. Entretanto, Jesus tinha também numerosos inimigos em Jerusalém. O Sinédrio, um órgão executivo composto dos principais sacerdotes judeus e de membros do grupo dos fariseus, conspiravam para matá-lo.

Com a ajuda de Judas Iscariotes, um membro do círculo mais íntimo de Jesus, o Sinédrio conseguiu prender Jesus, entregando-o para as autoridades civis romanas com a acusação insubstanciada de traição contra Roma. Apesar de Jesus afirmar consistentemente que o seu Reino era um do tipo celestial e espiritual, o procurador romano Pôncio Pilatos, temendo a possibilidade de uma revolta popular, ordenou que Jesus fosse levado para fora da cidade e crucificado como um criminoso comum."


Não encontro nestas linhas os traços de anti-semitismo primário de que o filme tem sido acusado, não obstante as referências a Caifás e ao Sinédrio. Mas claro que isto é apenas um resumo; costuma-se dizer que uma imagem vale mais que mil palavras e, de facto, as imagens do filme podem servir para o realizador acusar os Judeus de serem "blood-thirsty, sadistic and money-hungry enemies of Jesus", como referiram os responsáveis da Anti-Defamation League. A extrema violência do filme, por exemplo, certamente contribuirá para uma visão depreciativa do povo judaico.

Entretanto, a versão final da "Paixão" augura-se bem diferente da película original a que o Nuno Guerreiro assistiu há algumas semanas atrás. Mel Gibson tem procurado retocar o filme, de modo a não ferir susceptibilidades. A ver vamos. Desconhecia por completo que Gibson faz parte de uma seita católica ultra-conservadora (excomungada pelo Vaticano), e que o seu pai é um conhecido revisionista. É de lamentar.

Pessoalmente, é com alguma tristeza que assisto a toda esta polémica. Enquanto católico, queria apenas poder ver uma encenação da Paixão, o momento central da fé cristã. Trata-se do mais belo acontecimento narrado nos Evangelhos - talvez só superado pela Ressurreição - o momento em que Jesus voluntariamente se entrega para salvação de todos os Homens. Incluindo aqueles que O renegaram e mataram. Incluindo aqueles que ainda hoje teriam agido exactamente da mesma forma que Pilatos e o Sinédrio agiram, de modo a salvaguardar a tranquilidade pública e a estabilidade social. Se Jesus viesse agora ao mundo, que Lhe fariam? Internavam-No numa instituição psiquiátrica? Prendiam-No e condenavam-No como elemento subversivo? Ostracizavam-No e excluíam-No da sociedade?

Muitas pessoas de "bem", ao assistirem à "Paixão de Cristo", ficarão chocadas com o comportamento da populaça de Jerusalém, que insultou e apupou Jesus, enquanto Ele carregava a cruz. Mas não seremos todos nós um pouco como a populaça das ruas de Jerusalém? Quando troçamos da miséria alheia, quando julgamos os outros, ou quando nos recusámos a estender a mão aos que sofrem? Sempre que agimos assim, renegamos o próprio Cristo. "Em verdade vos digo que, sempre que o fizestes a um destes meus irmãos pequeninos, a Mim o fizestes". (Mat. 25, 40)

Entretanto, não resisto a transcrever as palavras do José, do excelente blog Guia dos Perplexos :

"(...) Nesta altura, em que parece que querem que discutamos de novo quem são os culpados da morte de Cristo, parece também que estamos a deixar esquecer o essencial. É que Cristo podia ter evitado o seu sofrimento e morte. Por várias ocasiões ele podia ter suavizado ou relativizado a sua mensagem, a sua postura. Se o tivesse feito certamente que o não teriam morto pois naquela altura não era nada de grave ser-se chefe de mais uma seita judaica. Ao recusar fazê-lo, Cristo deixou-se ser morto, tornou-se também Ele responsável pela sua própria morte. E Ele que era Deus, sacrificou-se pela sua mensagem aos homens, para que ela hoje possa ainda viver nos corações de quem Nele crê".