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quarta-feira, fevereiro 18, 2004




ECCE HOMO O Nuno Guerreiro (a quem aproveito para agradecer e retribuir as simpáticas palavras que me dirigiu), assistiu à ante-estreia do filme ”A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, e diz não ter gostado do que viu. Segundo ele, é um filme particularmente brutal, com violência a mais e um argumento pobre. O realizador terá exagerado na sua reprodução dos acontecimentos narrados no Evangelho, esquecendo-se que, como o Nuno referiu, os textos bíblicos são documentos doutrinários e não históricos.

Mas o que mais incomodou o Nuno terá sido o facto de este filme fazer eco de velhas teorias anti-semitas, que culpam todo o povo judeu pela morte de Jesus. Quanto ao real detentor do poder, Pôncio Pilatos, procurador romano da Judeia, o filme retrata-o conforme a imagem tradicional do governador que lava as mãos enquanto se condena à morte um inocente.

Por razões óbvias, não me posso pronunciar sobre aspectos técnicos de um filme que ainda não vi. Mas pretendo tecer um breve comentário sobre o papel de Pilatos na prisão e morte de Cristo.

Ao longo dos séculos, Pilatos foi visto como o governador débil que permitiu a condenação de Jesus para satisfazer os líderes judaicos. Até que ponto será isto verdade? A mim parece-me que a imagem do procurador romano foi intencionalmente “branqueada”, de modo a não chocar a mentalidade romana. Os Pais da Igreja queriam passar a ideia de que Cristo não foi condenado por desobedecer às leis romanas – o que daria mais argumentos aos que naquela época consideravam o cristianismo uma doutrina subversiva e inimiga do Estado – mas sim por se opôr à élite religiosa judaica. E de certo modo, isso é verdade. Frases como “o meu Reino não é deste mundo” (Jo. 18, 36), ou “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Lc. 20, 25) indicam que Jesus não se intitulava como o Messias político que certos judeus esperavam, mas como o Filho de Deus cujo domínio não é de natureza temporal, mas sim espiritual. O cristianismo nascente não pretendia a libertação da Judeia ou construir o “Grande Israel” com que os Zelotes sonhavam. Pilatos e Roma não tinham nada a temer a esse respeito.

Por outro lado, e não obstante estas considerações, talvez Pilatos tenha considerado que a nova seita poderia vir a assumir proporções perigosas para a ordem estabelecida. Ou talvez quisesse agradar a Caifás, de forma a conseguir certas facilidades políticas. Ou talvez o destino daquele Galileu lhe fosse simplesmente indiferente. De qualquer modo, creio que se assim quisesse, Pilatos teria livrado Cristo da morte. Por exemplo, o governador Félix fez exactamente o mesmo, anos mais tarde, quando protegeu o Apóstolo S. Paulo dos sacerdotes que o perseguiam.

Ainda a respeito do julgamento de Cristo no Pretório de Pilatos, os Evangelhos não são muito claros sobre quem exigiu a morte de Cristo. O de João, que é considerado o mais fiel do ponto de vista histórico (por ser o único a ser escrito com base no relato de uma testemunha ocular dos factos, o Apóstolo S. João), diz apenas que foram os príncipes dos sacerdotes e os guardas do Templo a pedir a morte de Jesus: “Assim que o viram, os príncipes dos sacerdotes e os guardas do templo gritaram: «Crucifica-O, crucifica-O!” (Jo. 19, 6). Já Lucas diz que “Pilatos convocou os príncipes dos sacerdotes, os chefes e o povo” (Lc 23, 13). Mas como é que se pode convocar o “Povo”? Pode-se, com certeza, conseguir a presença de alguns populares ou seus representantes, mas não de todo o povo de Jerusálem e muito menos de toda a Judeia. Marcos, por seu turno, diz que “Os príncipes dos sacerdotes, porém, instigaram a multidão a pedir que soltasse, de preferência, Barrabás” (Mc. 15, 11). Mais uma vez, a culpa é atribuída principalmente aos líderes políticos e religiosos.

Quanto ao Evangelho segundo S. Mateus, é o que dá a imagem mais negativa do Judeus, atribuindo as culpas a todo o povo hebraico. Há que ter em conta que este evangelho, ao contrário do de João, não foi escrito por uma testemunha ocular dos acontecimentos. Foi composto em Roma, nos anos que se seguiram ao reinado de Nero, pelo que o autor desconhecia por completo a realidade judaica na Palestina do tempo de Jesus. Vejamos o que diz:

“Pilatos disse ao Povo, que se encontrava reunido: “Qual quereis que eu solte, Barrabás ou Jesus, chamado Cristo?” (Mat. 27, 17)

“Mas os príncipes dos sacerdotes e os anciãos persuadiram a multidão a que pedisse Barrabás e provocasse a perda de Jesus” (Mat. 27, 20)

“(...) Pilatos, vendo que nada conseguia e que o tumulto aumentava cada vez mais, mandou vir água e lavou as mãos em presença da multidão, dizendo: «Estou inocente do sangue deste justo: Isso é convosco». E todo o povo respondeu: «que o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos!»” (Mat. 27, 24-25)

Os Pais da Igreja queriam culpar alguém da morte de Jesus; Pilatos não podia ser, porque acusar um procurador de César seria pôr em causa a própria legitimidade do Estado. Os culpados tinham de ser os outros, os que escapavam à tutela do poder romano: a Casa de Herodes, as autoridades do Templo e os zelotes. Pilatos seria, quando muito, culpado de omissão ou covardia.

Infelizmente, este ódio aos Judeus esteve na origem, pelo menos em parte, do anti-semitismo europeu. Ao longo dos séculos, o baixo clero ajudou a alimentar este ódio anti-semita, acicantando as massas contra os “pérfidos judeus”. Já o Papado, curiosamente (e ainda bem), protegeu o povo judeu das perseguições do poder temporal e da fúria das multidões. A este respeito, recomendo a leitura de um recente post do Tempore.

Voltando a Pilatos: sabemos que era um governador cruel e obstinado. Aliás, foi mesmo destituído do cargo e julgado em Roma devido a abusos cometidos na Samaria. Terá supliciado milhares de samaritanos e misturado o seu sangue com o das vítimas oferecidas em holocausto no santuário do Monte Garizim, profanando aquele local sagrado. Quanto ao julgamento de Jesus, creio que Pilatos foi tão culpado como os líderes judaicos (ou os chefes zelotes que queriam a libertação do “messias guerreiro” Barrabás). Aliás, Cristo sempre foi e será incómodo para os poderes políticos e económicos deste mundo; Jesus é e será sempre a “pedra de tropeço” para quem detém o poder.

Por esse motivo, faço minhas as palavras do Marcos (do Arqueoblogo, não do Evangelho) a este respeito: "Porque a maior parte do Homem é sanguinário e odioso, não compreendendo e não tolerando as suas palavras penetrantes, mais preocupado com os seus interesses, com as aparências e com o bem parecer.
Porque as suas verdades feririam muitos corações empedernidos de dirigentes religiosos e políticos, em qualquer época, em qualquer lugar".