respublica

quinta-feira, janeiro 15, 2004





PIO XII E O NAZISMO (II) Conforme referi num post do passado dia 7, tenho lido o polémico "O Papa de Hitler", de John Cornwell. Não fiquei convencido com a argumentação do autor, embora admita que ele possa ter razão em alguns aspectos. Cornwell analisou a vida e a carreira de Eugénio Pacelli, futuro Pio XII, pesquisando nos arquivos da Santa Sé.

1. A personalidade de Pio XII: o autor descreve psicologicamente Pacelli baseando toda sua a argumentação em meras conjecturas pessoais, ignorando completamente os testemunhos das muitas pessoas que privaram com o Papa. Assim sendo, Cornwell descreve a personalidade de Pacelli da forma que melhor convém à sua tese, sem dispor de provas sólidas para tal. Por exemplo, acusa Pacelli de anti-semitismo, fazendo uso de uma carta do então Núncio na Baviera, datada de 1919, em que este relatava o assalto da sua casa por um grupo de “judeus bolcheviques”. A expressão “judeus bolcheviques” seria, na opinião de Cornwell, uma prova dos sentimentos anti-semitas de Paceli, esquecendo-se que naquela época era muito comum – dentro e fora da Igreja - a associação entre judaísmo e bolchevismo. Além disso, era normal fazer referência à religião das pessoas; se os assaltantes fossem protestantes, talvez Pacelli se referisse a “luteranos bolcheviques”. Mas isso não significa que o Papa odiasse os luteranos ou fosse a favor do seu extermínio! Outro argumento utilizado como pretensa “prova” do anti-semitismo de Pacelli é o facto de ele em criança ter tido um professor anti-semita. Nada mais estúpido; também tive professores comunistas e salazaristas, e não sou uma coisa nem outra.

2. A política das concordatas: o autor é especialmente crítico da política de concordatas que Pacelli pôs em prática enquanto diplomata e secretário de estado da Santa Sé. Está no seu direito. Eu, contudo, compreendo que a Igreja procure defender os seus interesses. É perfeitamente legítimo.

3. A neutralização do Partido do Centro: o autor acusa Pacelli de, enquanto Secretário de Estado (durante o Pontificado de Pio XI), ter celebrado uma concordata com Hitler que permitiu aos nazis alcançarem o poder absoluto. Pelos termos desta concordata, os interesses da Igreja seriam respeitados pelo regime nazi, em troca da dissolução do Partido Católico do Centro, então um dos principais partidos políticos alemães (percursor do actual CDU). Segundo Cornwell, Pacelli permitiu a dissolução do Partido do Centro porque a Santa Sé “não o conseguia controlar”; ora se assim era, porque é que o Partido do Centro aceitou as “ordens” do Vaticano para se dissolver? Se era assim tão independente do Vaticano, porque é que se dissolveu quando o Papa ordenou? Parece-me que Pacelli percebeu que a tomada do poder pelos nazis era uma questão de tempo, e que provavelmente Hitler recorreria à violência contra a oposição - incluindo o Partido do Centro. Assim sendo, capitulou perante Hitler mas não sem antes negociar condições vantajosas para a Igreja. Vista agora, esta atitude pode parecer-nos covarde e hipócrita; mas ninguém conhecia ainda a verdadeira natureza do nazismo.

4. O silêncio perante o Holocausto: esta é a principal acusação que Cornwell move contra Pio XII, desvalorizando os testemunhos da época que referem os esforços do Papa para salvar o maior número possível de vidas. A sua oposição pública ao Holocausto não foi além de uma breve alusão, na mensagem de Natal de 1942, em que recordou "as milhares de pessoas destinadas ao extermínio, por questões raciais". O autor considera esta alusão insuficiente e ambígua. Talvez tenha razão, e o Papa tenha substimado a sua força e a da Igreja. Mas o próprio Cornwell reconhece que Hitler tinha planos para raptar Pio XII e eliminar o catolicismo. Essa seria, aliás, a sua "última tarefa" - não podemos esquecer que o nazismo alemão e o fascismo italiano, ideologias neo-pagãs, eram também inimigos da Igreja e do Cristianismo. Assim sendo, parece-me lógico que se o Papa tivesse criticado abertamente o regime nazi teria posto em perigo a vida de milhões de católicos. Ao mesmo tempo, o autor desvaloriza as provas dos esforços que o Papa terá empreendido em privado para salvar o maior número possível de vidas, sem no entanto apresentar argumentos sólidos que as contrariem.


Podemos discordar da orientação política de Pio XII, e do rumo que ele deu à Igreja, reforçando o poder papal e olhando com desconfiança a democracia. O mesmo se passa em relação às suas concepções morais que, contudo, devem ser analisadas à luz daquela época. Mas daí a acusá-lo de pactuar com o nazismo...

Creio que a obra de Cornwell peca essencialmente por dois aspectos: baseia-se demasiado nas suposições e no "talvez" e, ao mesmo tempo, esquece os testemunhos da época - quer das milhares de pessoas que conheceram o Papa, quer da opinião pública italiana e internacional. Em minha opinião, Pio XII era um diplomata brilhante, que defendia os interesses da Igreja acima de tudo. Talvez tenha acabado por negociar com o diabo em pessoa, mas o livro de Cornwell não é suficientemente conclusivo a esse respeito.