respublica

terça-feira, maio 10, 2005



DAR A QUEM PEDE Nos tempos que correm, torna-se frequente ouvir muitas pessoas dizerem que recusam dar esmolas a pedintes. Algumas dizem que preferem contribuir para alguma instituição de caridade, onde sabem que o seu dinheiro será “bem empregue”. Outras afirmam que dar esmolas a pedintes e “arrumadores” os habitua à mendicidade, quando o que eles “precisam é de trabalhar”.

Ainda consigo compreender que estas afirmações partam de pessoas alheias à Igreja. Mas fico muito preocupado quando são cristãos a falar assim – em especial, jovens da minha geração ou mais novos, como tenho ouvido frequentemente.

Vivemos numa sociedade que, em nome do relativismo moral, tudo “perdoa” às pessoas – mentiras, vaidades, invejas, traições, falsidades e egoísmos -, mas que não lhes perdoa o facto de não poderem, não souberem ou não quererem produzir riqueza. Na nossa sociedade do consumo e das maravilhas da técnica, alguém que não trabalhe torna-se indigno de compaixão, sendo votado ao mais atroz dos ostracismos.

Em relação ao primeiro argumento acima apresentado, o daquelas pessoas que se recusam a dar dinheiro a pedintes por estes alegadamente o gastarem em vícios, devo dizer que me parece extremamente falacioso. Imaginemos um “arrumador” toxicodependente que, ao longo de um dia de mendicidade, recolhe 75 euros (estimativa minha). Dessa quantia, certamente que a maior parte será dispendida na dose diária de droga. Mas um toxicodependente também precisa de comer, e é nisso que devemos pensar quando lhe damos esmola. Estaremos a dar-lhe dinheiro para se alimentar e não para se drogar. Além de que, ao recusarmos-lhe esmola, por mais parca que seja, estaremos a empurrá-lo para a criminalidade. E é nosso dever, enquanto cristãos, tudo fazer no sentido de que um irmão nosso não caia em desespero, pois caso contrário poderemos vir a ser também responsáveis pelas loucuras que ele cometer.

Evidentemente que todos os cristãos devem contribuir com donativos para instituições de caridade. Todavia, quantas vezes não será isso uma forma de “alívio de consciência”? Não será isso uma maneira de dizer: “já contribuí com a minha parte e agora que essas instituições os ajudem”?

Imagine o caro leitor que, de um momento para o outro, uma catástrofe natural, uma guerra ou uma qualquer perturbação económica e política o atira a si e aos seus para o mais absoluto estado de necessidade. Imagine que tudo o que o hoje possui, o fruto do seu trabalho e das suas poupanças, se perde nessa inesperada e inglória convulsão. Imagine também, caro leitor, que todo o seu mundo se desmorona e que, de um dia para outro, passa a depender da caridade alheia. Como se sentiria o leitor se, erguendo as mãos junto de um camião carregado de ajuda humanitária, o repelissem com pontapés, recusando-lhe auxílio e aconselhando-o a trabalhar para sobreviver? Numa situação dessas, como se sentiria o leitor se lhe visse negada a mais pequena ajuda por parte de outra pessoa?

Quero com isto ilustrar que, no mundo incerto e perigoso em que vivemos, todos estamos sujeitos a caírmos um dia na mais abjecta das misérias. Hoje são os “arrumadores” que se encontram nessa triste situação, mas amanhã poderemos ser nós.

Devemos por isso pensar duas vezes antes de repelirmos um irmão que passa necessidades, evitando fazer julgamentos morais. Até porque seremos julgados exactamente na medida em que julgarmos os outros.

O segundo argumento referido, segundo o qual dar esmolas a pedintes e “arrumadores” os habitua à mendicidade, parece-me igualmente falso. Evidentemente, melhor que lhes dar o peixe, será ensiná-los a pescar; mas um homem com fome consegue pescar? Conseguirá uma pessoa que não tem dinheiro para se alimentar e para se vestir decentemente, regressar ao convívio da sociedade, encontrar emprego e começar a trabalhar? Pode um homem que se encontra no fundo de um escuro poço, envolto nas densas trevas do desespero, construir uma escada para dele sair, se não for nisso ajudado por quem se encontra fora?

Além disso, quantas pessoas que se recusam a dar-lhes o peixe os procuram ensinar a pescar? Por ter lavado as mãos, Pôncio Pilatos não foi menos culpado que Caifás.

Quando damos esmola a um miserável, estamos a entregar-lhe apenas o que lhe pertence. Todos têm direito a sobreviver de forma digna, independentemente de quererem ou não trabalhar. A dignidade do Homem deve estar acima de qualquer teoria económica, direito à propriedade ou código moral. A economia, o direito e a moral devem ter como fundamento a promoção e defesa da dignidade humana, e não o oposto. Caso contrário, servirão apenas para perpetuar a dominação de uns sobre outros, bem como para defender os privilégios dos primeiros em detrimento dos segundos.

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P.S.: este texto foi publicado na edição de ontem da revista-blog Terra da Alegria, cuja visita recomendo, como sempre!