respublica

quarta-feira, novembro 19, 2003

O RECENTE INCIDENTE COM OS JORNALISTAS PORTUGUESES NO IRAQUE deu origem a uma nova onda de "informação reality show", com os espaços noticiosos ocupados pela glorificação de Carlos Raleiras e Maria João Ruela. Ele foi transformado em herói, no destemido aventureiro do jornalismo português raptado por Ali Babá e os quarenta ladrões; ela passou a mártir da informação, a nobre profissional alvejada em serviço. Não quero, de modo algum, menosprezar as qualidades pessoais destes profissionais ou a gravidade das situações com que o destino os brindou; mas esta onda reverencial e voyerista – do género "aqui estão os tampões da Maria João", ou "Maria João, foste atingida no rabo ou na coxa?" – enjoa-me profundamente. Os jornalistas passam a ser notícia, naquilo que, como diz o Lapsus Calami, pode ser chamado o "síndroma Manuela Moura Guedes".

John Simpson, célebre jornalista da BBC, viveu uma situação muito pior que a dos enviados portugueses. Simpson acompanhava uma força americana no Norte do Iraque, quando esta foi atingida por "friendly fire" – fogo que, na verdade, nada tem de amigável - ferindo gravemente o operador de câmera da BBC e ceifando a vida do jovem intérprete que os acompanhava, entre muitas outras vítimas mortais que viajavam na coluna militar. Apesar de visivelmente emocionado pela tragédia que o rodeava e principalmente pela perda do jovem de 25 anos que o acompanhava por "friendship and adventure", Simpson não deixou de transmitir do local uma reportagem excelente a todos os níveis. O enviado da BBC falou da morte e da destruição sem que fosse necessário filmar as dezenas de cadáveres que o rodeavam, pintando o quadro da tragédia sem que tivesse de chocar os tele-espectadores com a visão dos corpos estropiados. E a única altura em que falou de si mesmo foi quando mostrou as suas roupas rasgadas, de modo a poder demonstrar a força da explosão que quase lhe roubou a vida.