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terça-feira, junho 22, 2004




CHURCHILL Estou neste momento a ler "Winston Churchill - an intimate portrait", de Violet Bonham Carter, filha do ex-primeiro ministro britânico Lord Asquith, e amiga de toda a vida do velho Winnie.

Escrita por alguém que com ele privou durante tantos anos, é uma obra útil e interessante para conhecer a personalidade de Churchill. Bonham Carter descreve-o como um homem excêntrico, intelectualmente brilhante, corajoso e frontal, mas também egocêntrico e irascível. Um homem com uma postura "inocente" perante as mulheres, de uma lealdade e dedicação extremas aos amigos e à família. Todas estas qualidades e defeitos, aliadas à sua vigorosa independência e dinamismo, fizeram de Winston um homem amado e odiado ao mesmo tempo; um homem-fénix, que brilha e ascende tão rapidamente quanto cai de seguida; mas que renasce, cada vez mais forte, depois de cada provação. Com apenas 26 anos, dava já nas vistas no meio político britânico. Parecia haver algo na sua personalidade que fazia as pessoas amarem-no ou odiarem-no instintivamente.

O relato termina no desastre dos Dardanelos (1916), mas deixa antever um pouco das décadas seguintes. Imerso nos seus pensamentos e firmes convicções, Winston tem dificuldade em lidar com os aparelhos partidários e os indivíduos medíocres que os compõem e, não raras vezes, dirigem. Por tudo isso - e por uma série de erros políticos - perde o assento parlamentar e é votado a um ostracismo que muito o faz sofrer. Exila-se na sua casa de campo, entregue à escrita e à pintura. Não era, de facto, um grande político. Era um grande estadista, mas não um carreirista que ascendia através da lisonja ou da sistemática tentativa de agradar aos outros. Prova disso são as suas muitas derrotas eleitorais, desde a primeira eleição em que se candidatou (1900), às eleições gerais de 1945. Tinha as suas convicções - amava, sobretudo, a liberdade - e não abdicava delas.

Mas quando o país e o mundo precisaram de alguém firme e decidido, Winston Churchill ascendeu ao primeiro plano da política britânica e mundial, revelando todo o seu génio e determinação.

Como bem disse o Comprometido Espectador - cuja falta se fará sentir na blogosfera - a respeito de um post do André Belo, "(...) A história, enquanto disciplina científica (??), pode perfeitamente reabilitar Chamberlain, Halifax e todos aqueles favoráveis a um entendimento com Hitler. Afinal, tal posição é perfeitissimamente compreensível. Com a Europa, da França à Polónia, entregue à Alemanha nazi e à Itália fascista, e a Grã-Bretanha isolada na sua ilha, incapaz de qualquer acção ofensiva, como não compreender o desejo de negociação? Já a acção de Churchill pende mais para o lado do incompreensível. Um conselheiro sensato teria provavelmente dito a Churchill para não tentar a loucura de continuar em guerra com a Alemanha em circunstâncias tão desesperadas. Só que Churchill era, de facto, um pouco louco. E foi da sua insensatez, loucura e pura coragem (em larga medida incompreensíveis, à luz, por exemplo, de uma avaliação histórica assente na razoabilidade) que nasceu um dos mais notáveis momentos da história da humanidade.

A literatura dedicada a desmistificar Churchill nota o seu carácter inconstante, algumas duvidosas simpatias, os sistemáticos fracassos políticos e militares – em muito maior número do que os êxitos – e mil e um aspectos menos recomendáveis da sua vida. Tivesse Churchill morrido em 1938 e essa vida provavelmente resumir-se-ia numa palavra: fracasso. Semi-louco, alcoólico, tantas vezes patético, imperialista, com um curriculum militar carregado de desastres, Churchill seria talvez recordado assim mesmo com estas palavras que acabei de usar. Mas, não sendo Churchill, visivelmente, um santo, há na sua vida certos ingredientes das vidas dos santos. Tal como os santos se redimem de um passado pecaminoso comportando-se de forma benfazeja a partir de certa altura, o mesmo parece acontecer com Churchill e a sua obstinação anti-hitleriana de 1940.

Como a história é cruel, esta foi uma santidade ajudada pela vitória : o que diriam a opinião pública e os historiadores de hoje se a Grã-Bretanha tivesse sido derrotada na sequência da insensata decisão de Churchill? Desde logo, o mundo seria certamente diferente daquele em que vivemos. Mas mesmo admitindo que fosse igual, muito provavelmente diriam que essa derrota era previsível e que Churchill não teria passado de uma criatura disparatada que, a juntar aos fracassos anteriores, em 1940 lançara a Grã-Bretanha na mais insana das aventuras.

Mas é por tudo isto que eu acho que o mito sobrevive. Porque só um louco disparatado e insensato como Winston Churchill seria capaz de uma acção equivalente. Nenhuma criatura razoável e ponderada (como Chamberlain, por exemplo) o faria. No mais belo texto sobre Churchill que me foi dado ler, “Mr. Churchill”, de Isaiah Berlin (aqui), diz-se exactamente isto. Poucos políticos seriam capazes de dizerem com absoluta sinceridade que aquele preciso momento de 1940 era “a time when it was equally good to live or die”. Porque aquilo que resiste a todo o revisionismo é uma ideia, a qual, ao juntar-se com os restantes dados biográficos, dá origem a uma vida que se transcende a si mesma. E essa ideia é a ideia de que há momentos em que a rendição é impossível, porque vergonhosa, mesmo se a derrota aparece como mais provável do que a vitória. Momentos em que podemos morrer e sabemo-lo, mas antes isso do que vivermos manchados por uma vergonha intolerável. E isto, a história “objectiva” não “compreende”. A história “objectiva” certamente que “compreende” muito melhor as razões da rendição – afinal as mais sensatas. E quem ler o texto infestado de verrina de Christopher Hitchens ficará com a estranha sensação de que aquilo que ele diz está tudo certo (e nem sempre está: Hitchens toma como correctos erros revisionistas posteriormente desmentidos), mas rigorosamente errado ao mesmo tempo. Porque falta que Hitchens nos explique aquele momento único, que (goste-se ou não) é o momento fundador do mundo no qual vivemos actualmente. É por tudo isto mesmo que o mito de Churchill sobrevive. Porque a verdade é que só aquele homem carregado daqueles defeitos todos poderia feito a última e salvadora insensatez da sua vida. Salvando-se assim a ele, e com ele, salvando-nos a nós."